Confiar

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No fim das contas acabei ganhando mais rodadas, Anne dizia que eu trapaceava e que aproveitava de poder ver seu jogo. Ela não confiava completamente em mim, mas de certa forma aquilo não me preocupava no momento.

- Vai querer perder mais um pouco? - perguntei.

- Vai querer roubar mais um pouco?- ela ainda falava bem baixo, apenas sorri.

- Não roubo - ela suspirou.

- Acho melhor pararmos com isso, você é um deles- ela se afastou.

- Não se preocupe - disse suavemente -  Não farei mal a você - ela continuou tensa. Imaginava o quão difícil deveria ser para uma dela confiar em um caçador. Mas eu tinha um dever a fazer e não desistiria - Você pediu para eu confiar em você- lembrei-a.

- E eu acabei vindo pra cá.

- Não foi minha culpa - suspirei.

- Você só estava fazendo seu trabalho. Eu sei - sua fala era como um sussurro, encostei as costas na parede, não sabia se começava a esclarecer minhas dúvidas, ela não confiava em mim, mas de uma forma estranha ela me respondia, isso me deixava com vantagem. Perguntei o que mais me intrigava até o momento.

- Você é uma bruxa mesmo?- ela me olhou confusa como se fosse a pergunta mais idiota que eu podia ter feito.

- Sim, por quê?

- Por experiência com caçadas você não se parece nadinha com as outras bruxas. Ela costumam ser asquerosas, já vi umas com presas assim - imitei as presas com os dedos, ela sorriu - e você é bonita - acrescentei e puder ver um pouco de vermelho naquela pele pálida.

- Nem todas as bruxas são assim o tempo todo.

- O tempo todo?

- Espere a Lua de Sangue aparecer e você verá que não sou assim o tempo todo.

- Você tem presas?- nós dois sorrimos.

- Não, mas seria legal ter- seu olhar voltou a ser triste novamente - Por que me mantém presa? Quer dizer, por que não me matam logo?

- É isso que você quer?

- Não, mas é estranho. Ficar aqui, prisão ou morte, não sei qual o pior - falou tristemente.

- Sei que não sou uma ótima companhia, mas poderia ser mais sutil - brinquei.

- Você sabe ao menos por quanto tempo irão me manter aqui?

- Vou ser sincero, não acho que vão simplesmente lhe soltar por ai.

- Obrigada pela sinceridade.

- É o nosso...

- É o trabalho de vocês - disse completando a minha frase e suspirou - Só queria que as coisas fossem diferentes - eu nunca tinha pensado muito a respeito disso. E se nada disso existisse? Criaturas para caçar ou caçadores, será que nossa vida seria melhor? Apenas suspirei. Fiquei olhando para ela, qual seria sua verdadeira história? Será que ela era boa? Será que a Ordem mentira a vida inteira nos dizendo que todas as bruxas são das trevas? Queria lhe fazer tantas perguntas. Ela parecia tão frágil que era difícil acreditar que fosse mesmo nociva, sabia que eu era um tolo, porém estava sendo mais ainda confiando em uma inimiga.
Meu pai estaria decepcionado se ouvisse o que eu pensava, se ao menos minha mãe estivesse aqui, acho que ela teria bons conselhos. Isso me fez lembrar que ela foi morta por uma bruxa, foi horrível saber da notícia, meu pai usou da situação para me mostrar que não devia confiar nelas.
Precisava continuar meu trabalho, focando que uma dela havia matado a pessoa que mais amava, isso despertou um ódio e revolta. Respirei e continuei.

- Tenho mais uma pergunta.

- Você faz muitas perguntas- resmungou, fingi não ouvi.

- O que você queria que eu a ajudasse?

- Talvez algum dia eu te conte.

- E se eu tivesse parado você teria me contado?

- Sim- entendia seu lado, ela estava aprisionada afinal. E eu era apenas um caçador que provavelmente a teria matado.

- Esperarei você me contar.

- E você? Qual o real motivo de estar aqui?- não podia contar a verdade, mas tinha que ser convincente.

- Já disse, fazer companhia - ela suspirou inconformada - você não pode pensar que sou tão ruim, você nem me conhece.

- Nem você me conhece.

- E talvez eu esteja aqui para isso, para conhecer você - ela franziu o cenho desconfiada.

- Um caçador tentando ser amiguinho da bruxa? Isso não me parece uma boa história.

- Pode ser a melhor de todas- conclui.

No jantar, o refeitório estava cheio de pessoas falantes. Eu apenas mexia na comida. Kate estava de frente para mim.

- Você tá esquisito desde a última caçada, Klemann. É aquela bruxa nojenta?

-Só não estou com fome - talvez eu estivesse pensando na bruxa, mas não admitiria.

- Pois está perdendo, está muito bom- deu uma garfada e voltou a comer. Fiquei pensando se eles davam algo para os prisioneiros comerem ou era algum tipo de castigo deixá-los sem comer. Nunca havia me interessado pelos prisioneiros até aquele momento, talvez eu estivesse mesmo pensando na bruxa "nojenta". Ela havia me intrigado, sentia que era diferente conversar com ela do que com as pessoas ao meu redor.
" Foco John".
Pensei comigo mesmo. Senti algo bater em minha cabeça me fazendo voltar para a realidade.

- Vamos, John - Kate havia me acertado com uma maçã, todos já estavam saindo. Me levantei e a segui, sabia que do jeito que meus pensamentos estavam a noite seria longa.

A DecisãoOnde histórias criam vida. Descubra agora