Capítulo IV - Realidade

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Vem-me à cabeça lembranças que eu nem sabia ter. Eu assisto a tudo como um espectador, sem participar.

Vejo desde meu nascimento. Desde minha mãe e meu pai brigando quando eu nasci. Desde minha mãe se afundando em álcool. Desde meus pais morando em casas separadas. Desde a notícia da gravidez da minha mãe. Desde eles voltando a morar juntos novamente. Desde eles reatando. Desde minha irmã nascendo. Desde eles brigando de novo por que meu pai achava que o filho não era dele. Desde minha mãe saindo de casa novamente para morar com minha vó. Desde minha vó morrendo. Desde minha mãe voltando a morar com meu pai novamente. Desde eles reatando pela segunda vez. Desde eu caindo do telhado. Desde minha mãe e meu pai chorando diante de mim na maca do hospital. Desde eu voltando para casa com uma cadeira de rodas. Desde uma mulher loira entrando em nossa vida. Desde eu andando novamente milagrosamente. Desde eu não me lembrando de mais nada sobre meu acidente. Desde um ciclone matando meus amigos e conhecidos. Desde nós encontrando essa mulher loira novamente. Desde eu descobrindo que meu pai morreu. Desde minha irmã chamando por meu nome enquanto era sequestrada. Desde minha mãe me olhando com desprezo após o sequestro de Brianna. Desde a mulher loira ajudando a mim e minha mãe a nos mudar para um vilarejo. Desde minha mãe odiando o vilarejo. Desde a mulher loira nos deixando. Desde eu caminhando até um rio. Desde tudo. Desde agora.

Grito, pois não aguento mais revirar minhas memórias sem poder fazer nada, sequer falar. Sinto uma mão se fechar em meu braço, me levantando. Também sinto um vento frio me atingir, e percebo que estou molhado. O rio ao qual me afoguei, o mesmo ao qual eu sonhe tantas vezes com suas águas caudalosas e farta de peixes., o mesmo famigerado Capital, me faz chorar por lembrar disso tudo.

- Por que você fez isso? O que tinha na cabeça? Me causar problemas? - Minha mãe pergunta, me puxando pelos braços. Eu não respondo, deixo-a com seus resmungos, pois, afinal, eu não saberia o quê responder. Não tenho nenhum argumento. Eu não sei o que me levou até o rio, ou melhor, não sei o que me chamou até lá. Algo mais forte que eu queria que eu vesse tudo o que eu passei por alguma razão a qual eu também não sei.

O resto do dia minha mãe passou reclamando. Reclamou da pousada velha e suja a qual Eliea nos sujeitou. Reclamou de não termos dinheiro. Reclamou de não termos casa. Reclamou de meu pai ser tão inútil ao ponto de morrer. Reclamou do sequestro de minha irmã e de como isso é minha culpa. Reclamou de mim e de como não sirvo para nada, de como sou um fardo. Eu não respondi nada, não falei nada durante o dia inteiro. Até um certo momento.

- Tudo é culpa sua e do seu pai! - Reclamava. - Se ele não tivesse abandonado eu e sua irmã para te resgatar, ele estaria vivo para nos arranjar uma casa e sua irmã estaria presente. Agora estamos aqui, nessa merda de pousada, numa merda de vilarejo, com um merda lamaçal e pobres.

- CHEGA! - Gritei. Não consegui me conter porque não tinha mais como. É um absurdo eu ser obrigado a isso.

- Quem você acha que você...

- Não interessa quem eu sou! O que interessa é que você não para de reclamar de tudo ao invés de agradecer por estar viva. Interessa também é que você não fez e não faz nada para mudar isso! Não fez nada para impedir a morte do seu marido. Não fez nada para impedir a morte de sua filha. Não fez nada para ninguém. E não está fazendo nada agora também! Não vai atrás de um emprego, de uma casa, de nada! Oh, não. Eu me enganei. Porque você fez umas coisas sim. Você reclamou e colocou a culpa em todo mundo menos em você mesma que é a real culpada disso tudo! - Desabafo e solto o ar que eu nem sabia estar segurando. Nada do que eu disse a ela é mentira, mas após a raiva momentânea passar, sinto um pouco de remorso por ter sido grosseiro.

Agora, ela me olha, perplexa. Seus olhos e boca estão escancarados. Surpresos. Espero que ela me responda da mesma maneira com a qual eu falei com ela. Espero que ela me xinga e me culpe por tudo novamente. Espero que ela volte a reclamar novamente. Mas não. Nada disso acontece. E não sei se é melhor ou pior do que ela voltar a reclamar. Porque em vez disso, ela sai do quarto e bate a porta. Vou até a janela, esperando ela passar. Ela caminha a passos largos e firmes, com raiva. Observo-a até sumir de minha visão.

Penso em segui-la, implorar por perdão. Mas, conhecendo ela, é capaz de piorar a situação. É melhor deixa-lá sozinha. Esperar ela voltar, de cabeça fria. Aí sim eu poderia começar minhas desculpas. Sentindo-me mal por tudo, adormeci.

Sonhei com meu pai, vivo, pescando ao meu lado. Estávamos no rio Capital. Tinhámos um casebre de madeira em frente ao rio. Com mata densa ao nosso redor e barulho de grilos, se eu fechasse meus olhos poderia me imaginar sendo parte da vegetação. Meu pai encarava o rio com uma expressão leve, despreocupado como eu nunca havia o visto. Parece que tinha tirado um fardo das costas, parecia até mais jovem. Sua pele, limpa, tinha um brilho majestoso.

- Você não está sozinho, filho. - Ele murmurou, com uma voz angelical que fazia eco pelas águas. Eu não entendia o que ele queria dizer, então voltei a prestar atenção em seu brilho.

Minha mãe surgiu, com minha irmã nos braços. Nenhuma das duas tinham o mesmo brilho do meu pai. Mas pelo menos Brianna sorria. Minha mãe permanecia de expressão fechada, quieta e solene.

- Prepare-se, Kilorn. Não perca suas esperanças. - Brianna dizia, sorridente. - Você não está sozinho.

Você não está sozinhos. Você não está sozinho. Não está sozinho. Sozinho. Sozinho.

Essa frase ecoou por minha cabeça com diferentes vozes. A voz de meu pai, de Eliea, minha irmã. Sinto-me reconfortado por eles. Mas não escuto a voz de minha mãe.

Abro os olhos, mas tenho que fechá-los novamente devido ao raio de sol em meu rosto. Parece que acordei mais cansado do que se não tivesse dormido.

Desvio do sol e quase caio da cama. Levanto rapidamente quando percebo que minha mãe não está aqui. Não sei se ela veio e foi embora antes que eu acordasse ou se ela sequer voltou. Devido a situação, considero a segunda opção. Levanto-me e me aprontou para o café da manhã. Desço as escadas de madeira rangentes. Uma senhora com pele da cor do carvão sorri alegremente.

- Bom dia. - Cumprimenta-me. Eu não acho que estamos em um bom dia, por isso apenas aceno por educação. Sento-me a mesa próxima a janela e observo o movimento da cidade.

Não deixo de notar a lama em alguns pontos da rua e pedestres desviando delas. Assim que meu café chega, observo uma garota caminhar tranquilamente pela mesma rua. Parece estar indo ou voltando da escola, pois carrega uma mochila em suas costas. Ela parece inocente e feliz, despreocupada. Provavelmente sua mãe não está magoada com ela e por isso não voltou para casa no dia seguinte. De repente, suas mãos rápidas e pequenas correm por uma mesa de um mercador na esquina, e roubam um pedaço de tecido. Ela o esconde rapidamente, e volta a caminhar como se nada tivesse acontecido. Seu sorriso continua o mesmo. Deve estar acostumada a fazer isso. Fico desconcertado diante da situação, surpreso.

Ninguém mais é inocente. Não basta se esconder em uma fachada de feliz e despreocupado. Sempre tem um lado sombrio por trás dessa pessoa, uma escuridão em seu coração que a faz realizar coisas ruins a elas ou a outras pessoas. Isso me deixa triste. A partir de hoje, sinto que não vejo o mundo com os mesmo olhos que eu o via após o rio me lembrar de certas coisas. Agora, para mim, parece um lugar tenebroso onde as pessoas sentem medo e se escondem. Temos que nos esforçar para vermos as entre-linhas. Para vermos os detalhes. Para vermos os defeitos.

E pensar que precisei de um rio caudaloso e termal me acordar e me trazer a realidade dura e desconcertante. 

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⏰ Última atualização: Feb 02, 2019 ⏰

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