Capítulo III - Um rio me trouxe tristes pensamentos

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- Daisy... - Eliea murmura. Seu rosto inchou e suas bochechas coraram em um tom de azul lívido. Então é assim que os prateados coram. 

Uma sombra passa rapidamente pela janela, causando um leve tremor na minha espinha. Pego a arma próxima aos pés de Eliea, e mesmo sem saber manusear, miro. Eliea percebe meus desconforto e saca a arma mais próxima a si. 

- O que foi isso? - Pergunta. 

- Não sei. Eu vi uma sombra passar pela janela. E foi de lá que a bala veio. 

De repente, a tristeza predominante nos olhos azuis de Eliea vira ódio. Seus movimentos tornam-se mais bruscos, rápidos. Um ruído alto soa ao longe, e nem eu nem ela seguramos ao ímpeto de ir até. Eliea lança um último olhar triste para a filha e a abandona. 

Caminhamos em direção ao barulho, mas somos interrompidos por um outro tiro. Eliea, muito mais rápida e treinada do que eu, um garotinho, rola pela grama empoeirada até um arbusto. Eu a sigo, e em questão de minutos, Eliea troca tiros com alguém não identificado. Por último, ele é pego de surpresa por um disparo duplo, o que nos dá tempo o suficiente para corrermos. 

- Preciso deixa-lo em um local seguro. 

- Conheço uma casa em Currit Aqua que tem um abrigo subterrâneo. Podemos invadir e ficar lá até que o ciclone se disperse. - Digo, apontando para os vestígios do fenômeno, que ainda assusta as pessoas, só que bem mais longe de nós. 

- Não aqui. Não vou deixa-lo nessa cidade. 

- Mas eu moro aqui. - Lamento. 

- Eliea! - Alguém grita. Ela aponta a arma em direção ao grito. - Eliea! Sou eu, Lisa. 

- Mãe! - Grito. E quando percebo, já estou correndo em direção à duas sombras. Minha mãe e Brianna me abraçam. - Papai, ele...

- Eu sei, querido. Eu sei. - Ela diz, me abraçando mais uma vez. Fico reconfortado de primeira, feliz por ela ter entendido o porquê deu tê-lo abandonado. Mas depois, sinto um pingo sobre meus cabelos. Olho para cima e minha mãe se derrama em lágrimas silenciosas. - Sinto muito, filho. - Ela lamenta. Sua voz abafada por mais lágrimas. - Eu... eu não pude...

- Mãe? O que... o que houve? 

- Seu pai. Ele... 

- Não.

- Ele se foi.

- Não!

- Sinto muito, querido. - Ela murmura. Envolve-me em um abraço, junto com Brianna, que enxuga minhas lágrimas (as quais caíram sem meu consentimento) sem sucesso. Bri também chora, mas não por ele, por mim. Não entendo. 

Atrapalhando o momento, uma mão forte puxa os braços esguios de Brianna, que grita. Um homem musculoso puxa minha irmã para a floresta, enquanto outros formam uma parede humana, impedindo qualquer um de avançar. 

- Kilorn! - Ouço os gritos abafados de Bri. - Kilorn! - Ela grita novamente. Enquanto isso um outro homem desvia um soco na boa do estômago de minha mãe, imobilizando-a. Eliea aponta os dois punhos para dois homens. E eles se movimentam de acordo com sua cabeça e seus acenos. Ela os controla. Estou tão assustado com ambas as cenas que não percebo quando um chute atinge meu braço, me jogando para longe. - Kilorn. - Ouço minha irmã de novo. Porém, dessa vez, ela não grita. Apenas diz, aceitando. A cena e a voz de minha irmã me afunda em um rio de choro e tristeza. Meu coração se quebrou com isso. Sinto-me isolado do mundo. Os ruídos e gritos estão abafados. A única coisa que ouço é as últimas palavras de Brianna. 

- Vamos. - Percebo Eliea me puxando para longe. Seguida de minha mãe. 

Os homens vestidos de preto em armadura não nos seguem. Parece que conseguiram o que queriam. Brianna. Sinto uma pontada de raiva se converter em uma avalanche. E depois de tanto pensar nisso, nem sequer percebo que estou em um veículo. Quando levanto, fico tonto e o mundo ao meu redor passa a girar. O pouco que vejo é uma motorista loira e alguém no banco do passageiro aos prantos. Também vejo que estou deitado no banco de trás, em roupas limpas. Fecho os olhos novamente.

*****

Ao que parece, horas se passaram desde tudo. Minha irmão foi sequestrada, meu pai morreu. Agora estou em um veículo fechado com uma prateada bêbada que será rainha, uma mulher que perdeu uma filha e o marido que traiu. Tudo o que ela tem agora sou eu. 

Lembro-me de Eliea ter dito que precisa me levar a outra cidade onde seria seguro. E isso se aplicava a minha mãe e Brianna também. Eliea sabia disso. Mas eu não a questiono. Estou deprimido demais com a situação. O veículo para e descemos.

Não olho para onde piso, e sinto a lama atingir meus calcanhares. 

- Bem-vindos à Albanus, ou Palafitas, como quiserem chamar. - Eliea apresenta o vilarejo com casas de madeiras erguidas por barras de sustentação e um lamaçal em vez de terra ou grama. Minha mãe torçe o nariz diante da visão. Já eu, fico um pouco empolgado com a brisa quente e grudenta que traz consigo um leve aroma de peixes. O rio Capital. Meu sonho, desde menor, foi pescar no Capital. Um rio caudaloso com abundância de cardumes. O Siracas - rio de Currit Aqua - era frio a maior parte do ano e seus peixes eram quase escassos. Por isso a admiração pelo Capital. Lembrei-me quase que de imediato de meu pai. Se fosse em outra situação, uma em que ele estivesse vivo, estaria tão empolgado quanto eu. - Vocês vão morar aqui a partir de agora. Consigo um trabalho para você, Lisa. 

- E você? Vai aonde? - Pergunto à Eliea.

- Ah, meu querido. Eu vou para a minha casa. - Ela diz, olhando rapidamente para minha mãe. - É onde eu devo estar. 

Suas palavras doces me deixam mais tranquilo com a situação. Fico triste por ter que deixa-la. Eliea é muito gentil, pelo menos comigo. E parece que todos estão me abandonando. 

- Tenho que ir agora. Já estou fora a tempo demais. - Eliea murmura e entrega um papel na mão de minha mãe. - Vá até. - Minha mãe apenas concorda com a cabeça, e em questão de minutos, já vai a passos pesados, a um local sem lama. Ela com certeza sente nojo. 

- Você irá nos visitar? - Questiono-a. Eliea se agacha ao meu lado. 

- Creio que não. Depois de tudo... isso, visita-los é a última coisa que poderei fazer. Mas talvez você me veja na televisão. - Ela diz, crente. 

- Você ainda vai visitar a sepultura do Stanley? Lá em Currit Aqua? 

Percebo que minhas palavras a deixaram meio tensa, acertando em cheio um ponto fraco. Sua expressão de tristeza e incômodo se esvai e dá lugar a um rosto feliz e conformado. 

- Não mais. - Diz, doce e gentil. - Agora... - Eliea se levanta, lentamente. Olha para o horizonte e depois para mim. - Sinto muito, mas... você não irá se lembrar disso. Mas prometo deixar uma sensação familiar se você me ver algum dia, talvez uma lembrança vaga, mas você não saberá que foi com você. - Ela diz isso com uma voz treinada, sem falhas e quase... robótica. 

- O que? - Pergunto. Antes que possa me responder, vejo estrelas azuis. Seus olhos. 

Tudo o que aconteceu passa em minha mente como um filme. Desde a minha mãe chorando as escondidas, a  formação do ciclone, Luke, Jhonatan e Oscar sendo levados pelo mesmo, meu pai me encontrando perdido no meio da rua, eu e meu  pai indo ao monte Twan em busca de abrigo, meu pai atirando naqueles dois guardas que amarravam as vítimas, eu conhecendo Eliea, descobrindo a traição de meus pais, Eliea me salvando, Daisy morrendo, Brianna sendo sequestrada, até o veículo. Tudo isso agora não passa de uma lembrança escura em minha mente. Tento me esforçar para lembrar, pois sei que isso aconteceu, só não consigo... ver.  A última coisa que vejo é uma mulher loira, alta, pálida e de olhos azuis me abraçar e beijar minha testa. Vejo-a entrando em um veículo e sumindo no horizonte. 

Desperto do meu estado de transe. E lágrimas quentes umedecem minhas bochechas. Algo aconteceu comigo, e foi triste. Agora, me sinto totalmente sozinho. Parado em meio a uma estrada coberta por lama. Tudo o que ouço é o barulho das águas caudalosas do Capital me chamando. Meus pés, instantaneamente, atravessam a pista e me esgueira por entre galhos e folhas. Caminho por lama, terra, areia, água. Que me cobre até o joelho. cada vez mais funda, como um cobertor. Ainda caminho, cada vez mais fundo. Sinto água bater no queixo. E fecho os olhos. Penso em um grito de uma criança, uma menina, me chamando tristemente. Com isso, termino de afundar. 

Sozinho. 

Maré de LembrançasOnde histórias criam vida. Descubra agora