INTERLÚDIO 1

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O ano de 1894 foi decisivo na vida de José Eduardo Gonçalves da Silva, ou Dudu, como ele era conhecido pelos comerciantes, ladrões, mulheres-damas, bandidos e outros tantos casos perdidos pelas ruas da cidade. É claro que Dudu não fazia a mínima ideia da importância daquele cinco de fevereiro na sua vida. Afinal, ainda era quase "madrugada", nove horas da manhã. Para completar, caía uma chuva fina que, junto com o vento trazia um frio de gelar os ossos. Dudu estava de frio e fome, tentando escapar das goteiras que caíam pelos buracos no teto do barracão abandonado. Mesmo com a chuva, Dudu estava animado. Sabia que o desfile do rancho Reis do Ouro seria uma grande chance de conseguir dinheiro. O rancho deve levar quase toda a cidade às ruas nessa segunda-feira de Carnaval chovendo ou não.

No dia anterior, um domingo, Dudu perdeu a chance de conseguir "achar" algumas carteiras e bolsas cheias de dinheiro que as madames e cavalheiros distraidamente deixavam cair durante os folguedos de Momo. O Reis do Ouro foi recebido no palácio do Itamaraty com toda pompa e muita gente assistindo pelo próprio Marechal Floriano Peixoto. O garoto não quis arriscar, já que muita polícia foi chamada pra garantir a segurança dos ricaços e dos políticos que foram à cerimônia. Hoje, no Campo do Polé, seria bem mais fácil aliviar os bem nascidos de suas riquezas que sobravam em suas mãos e faltavam na barriga de tanta gente. Gente como ele. Às nove da manhã Dudu e outros garotos já estavam à frente do grande Theatre Franc-brésiliene, observando as seges, bondes e ônibus, trazendo os ricos de suas mansões na Glória, Catete ou São Cristóvão.

Quando o Campo do Polé começava a encher de gente e a fanfarra dos instrumentos aumentava. Dudu e seus amigos se embrenharam pela multidão, à cata de um incauto que deixasse a carteira aparecendo no bolso do paletó, uma corrente de relógio brilhando no colete ou uma dama descuidada com a bolsa aberta repousando no seu braço, enquanto ajeitava o chapéu ou se abanava com o leque. Dudu nem precisou procurar muito. Em pouco tempo encheu os bolsos da sua calça curta. Mal tinha acabado de surrupiar a carteira de um velho que parecia ser pai do rei do baile, de tanto que gritava e já se dava por satisfeito com esse e outros furtos, Dudu percebeu as faixas douradas na farda azul marinho. Nem precisou olhar para as calças brancas, ou para o quepe azul com pluma e detalhes dourados. Sabia que ali estava um policial e que ele o havia visto e vinha em sua direção. O menino virou-se e quando começava a correr, deu um baita encontrão na porta-estandarte do rancho. A mulher caiu, enlameando todo vestido dourado e Dudu caiu junto. O mestre-sala ajudou sua parceira a levantar e Dudu foi erguido do chão por mãos muito mais rudes e fortes. As carteiras e bolsas que ele havia pungado estavam espalhadas pela rua enlameada, tornando impossível disfarçar seu crime. Enquanto era entregue pelo policial a dois outros que apareceram, Dudu via seus amigos saindo da multidão.

- Então, moleque, qual o seu nome?

- Eu já disse que não sou moleque!

Claro que Dudu nunca iria fornecer qualquer informação àquele branquelo do nariz de batata que o havia prendido. Mas nem por isso iria aceitar o desaforo de ser chamado de moleque. Como que percebendo o ego ferido de Dudu, o policial continuou:

- Ah, é? Então, quer ser tratado como homem? Olha, bem que poso fazer isso. Afinal, não sei teu nome, de onde vens se tens pais, qual tua idade... Não sei nada! Posso encarcerar-te no Ajube, se me apetecer. Que achas disso, valentão?

Dudu tinha 16 anos naquele dia. Completaria 17 em novembro, antes da eleição. Os últimos sete anos foram de muita fome, sempre fugindo, indo de um buraco para outro, vivendo à base do que arrecadava com os pequenos furtos pelas ruas do Rio de janeiro. Mesmo assim, para ele, aqueles foram anos bons. Quer dizer, bons tanto quanto possível. Pelo menos não foram como os nove primeiros anos, sempre espancado toda vez que seu pai bebia. E o velho bebia todo santo dia. Com sete anos José já tinha mais fraturas calcificadas e ossos trincados que a maioria dos adultos. As manchas roxas nunca deixavam seu corpo e ele nunca teve todos os dentes na boca ao mesmo tempo.

Cansado de sentir o gosto do próprio sangue na boca e não aguentando mais deitar e não conseguir dormir com medo, esperando o monstro chegar em casa para mais uma sessão de tortura, José fugiu de casa. Não tinha outra saída. Ainda era novo demais, fraco demais para tentar matar o maldito. Não podia se proteger nem defender a sua mãe, a primeira e maior vitima do desgraçado. A mãe, de quem só lembrava o sorriso e o nome, Lara. Ela não quis acompanha-lo na fuga. Disse que só atrasaria o menino e que e que os dois seriam mortos caso o pai os encontrasse. José fugiu numa noite de chuva, só com a roupa do corpo e o que a mãe conseguiu juntar numa trouxa para ele. Nunca olhou para trás.

Dudu agora olhava para seu mais novo alvo de ódio, o policial que o prendera. É claro que temia ir para a cadeia e ficar trancafiado numa cela minúscula e abarrotada com assassinos, estupradores e tudo que houvesse de pior. Mas o maior medo do menino era que a polícia descobrisse quem ele era e o mandassem de volta para a casa dos pais. Essa possibilidade fazia o sengue gelar em suas veias. Faria qualquer coisa para que essa desgraça não lhe acontecesse.

Parecia que o policial tinha lido exatamente aquilo no rosto do menino, que antes era rebelde e desafiador e agora se encolhe na cadeira, como uma fera acuada. O policial deve ter refletido nas suas alternativas. Ou jogava o diabrete na cela e o deixava à própria sorte com a canalha da pior espécie, ou o encaminhava para o Serviço de Assistência e Caridade, para que descobrissem quem ele era na verdade, sua idade e, caso fosse menor, o encaminhassem para a família ou um orfanato. Mas, enquanto o garoto não fosse identificado, ficaria recolhido num orfanato, que, em alguns casos, não eram nada melhores que a prisão. Foi então que o policial resolveu usar seus contatos para ver se conseguia salvar àquela alma.

Deu certo. Dudu foi para um bom orfanato, graças a influência do policial. Em menos de três meses José Eduardo Gonçalves da Silva, nome inventado, deixava para sempre outro nome inventado, Dudu, para trás e engrossava as fileiras do Exército Brasileiro, como recruta em treinamento. Enquanto viveu, ele lamentou não ter gravado o nome do policial nem poder voltar e agradecer àquela boa alma que lhe deu nova vida naquele dia cinco de fevereiro, segunda-feira de Carnaval.

O NATAL E  A VOLTA DE JESUSOnde histórias criam vida. Descubra agora