- Por favor, para de bater no menino, ele vai morrer...
- Pois eu quero é que morra! Por que vou sustentar esse traste inútil que só me dá desgosto?
- Mas ele não fez nada, homem, só derrubou um copo com um pouco de cachaça, que estava no canto da mesa. Quem dera tivesse derrubado a garrafa, assim, tu parava de se embebedar...
A mulher nem conseguiu completar a frase. Caiu, rodopiando, com a força da bofetada que explodiu no seu rosto. A criança, na época com seis anos, vê o esguicho de sangue saindo da boca da mãe, respingando a madeira do barraco. Apenas mais uma entre tantas outras manchas, algumas de um rosa desbotado, outras, vermelho vivo, marcas do espancamento diário sofrido por mãe e filho. O menino quer gritar, mas a voz morre na garganta. Quer se levantar, mas cada osso do seu corpo dói, alguns devem estar até mesmo quebrados. Faltam-lhe forças. Nada pode fazer, além de observar, impotente, a sucessão de socos e pontapés que a mãe tanto amada sofre. O homem, fedendo a aguardente barata, revira a cama e de baixo dela tira um porrete. Vira-se para o menino que, ante a perspectiva de morrer, consegue reunir forças e fugir do barraco, meio correndo, meio se arrastando. O pai tenta pegá-lo, mas tropeça nos trapos que servem de lençóis e cai pesadamente. Furioso pelo espetáculo patético que desempenhou e frustrado por que sua vítima fugiu, escuta risos.
Vira-se e vê a mulher recostada à parede, as mãos segurando o que resta de suas costelas. Ela está rindo. Parecia feliz. Por um segundo ele fica confuso. Aí, ela diz: "Pelo menos ele você não maltrata mais, desgraçado." A fúria lhe avermelha as faces quando avança para ela. A mulher se levanta, mas o monstro armado de porrete lhe barra o caminho para a porta. Sem ter alternativa, a mulher caminha em direção à janela.
- Não tem pra onde você correr, crioula burra. O inútil do seu filho fugiu, mas você não me escapa.
A mulher anda para trás, um braço estendido à frente, numa débil tentativa de defesa. Seus pés tocam a parede e ela sabe que chegou ao fim da linha. Sabe que hoje vai apanhar com nunca antes, pois o monstro que um dia foi seu amado marido vai descarregar nela toda raiva pela fuga do filho.
- Por favor, para. Por que você me odeia tanto?
- Eu te desprezo piranha. Tu não presta. Não vale o resto da minha comida. Vem pra cá crioula fedida. Se eu tiver que ir aí e te pegar vai ser pior.
"Pior como?", pensa a mulher. Qual tormento no inferno pode ser maior do que ela sofre todos os dias? Inconscientemente, ela sobe na janela. Quer sair dali. Quer fugir. Quer que a dor pare. Não quer morrer, ela quer viver, mas lhe faltam forças para passar mais um segundo naquele sofrimento. Agora, é o homem quem ri. Debocha dela, imita seus gemidos, débeis pedidos implorando piedade. Ele bate com o porrete no que ainda está inteiro pelo barraco e a ameaça. Está tão focado nela que nem dá atenção ao barulho atrás de si, na entrada do barraco. Avança lentamente, como se saboreasse cada segundo de terror que causa nela.
- Eu não aguento mais! Não é justo, por favor...
- Quer saber, sua puta? É melhor tu pular. Pula, desgraçada. Pula por que se tu não pular e eu te pegar, tu vai desejar ter pulado.
A mulher olha para fora da janela e só enxerga a escuridão do mato na encosta do morro. A brisa da noite sopra e lhe acaricia o rosto, trazendo um último alento, uma carícia de misericórdia, quem sabe, um convite. Ela ainda olha pra dentro do barraco, no lugar do lindo soldado que um dia conquistou seu amor e lhe deu seu maior tesouro, um lindo filho, e vê o mal em forma de gente. Os olhos esbugalhados, babando e com os dentes à mostra. Ele não sorri como um ser humano faria, mas rosna como uma fera, ou um demônio. O vento esvoaça os cabelos dela e lhe fala ao ouvido. Ela desiste.
Enquanto ele grita "puta covarde, não tem coragem de pular", ela solta as mãos do batente da janela. Antes que a gravidade aja, ela ainda consegue dizer "eu te amo". O corpo cai para trás e, por um segundo, parece que o vento cumprirá alguma promessa feita e a sustenta no ar. E sustenta, mas só por um segundo.
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O NATAL E A VOLTA DE JESUS
Short StoryÉ véspera de Natal e Jesus está de volta. Diferente do Jesus da Bíblia que prometeu voltar para buscar os santos, Jesus Brasileiro da Silva, na véspera do Natal, que também é a véspera do seu aniversário de 33 anos (a idade de Cristo), está de volt...