CAPÍTULO 2

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Às dez horas da noite a igreja estava quase que completamente vazia. Passado o temporal, ficaram uns beatos que rezavam em frente ao altar, uma ou outra velhinha rezando diante da imagem de um santo num altar lateral, ou dormindo num dos bancos duros da igreja. Pouco depois das onze horas começaram a chegar as pessoas encarregadas de organizar a ornamentação para a Missa do Galo. Além desses fiéis, estavam ali apenas Jesus e os canalhas que ele iria matar dentro em pouco. Tudo transcorria de acordo com o plano. Quer dizer, nem tudo, mas Jesus não reclamava nem um pouco do que havia de diferente. Muito pelo contrário, estava até feliz, se é que se pode associar felicidade com o ato que estava prestes a praticar. Em um dia de serviço normal, Jesus Brasileiro da Silva matava apenas um maldito em cada empreitada. Justamente hoje, na véspera de Natal, que também é véspera do seu aniversário​, Jesus estava comemorando e antecipando a chance real de matar três desgraçados de uma só vez.

A alegria era tanta que Jesus quase agradeceu a Deus, ao Capeta, ou aos dois, só para garantir que não seria ingrato com seu benfeitor. Teria feito isso, caso acreditasse neles. Jesus sabia que nenhuma vida era fácil, especialmente a dele. Por isso mesmo ele se orgulhava de nunca ter sido do tipo meloso, que vive reclamando da vida, muito menos um daqueles beócios que se joga num canto enquanto a Fortuna passa para benfazer aos corajosos. Jesus Brasileiro da Silva não era do tipo que desperdiça oportunidades, ainda mais a oportunidade de matar três canalhas de uma só vez.

Decidiu seguir com o plano, não importando as mudanças de última hora. Ele não tinha mesmo nenhuma alternativa planejada. Mas Jesus era cabra esperto e engenhoso. Sabia que com um improviso aqui, uma gambiarra ali e tudo se ajeitava. Levantou-se do banco, caminhou lentamente até o altar e chamou com um aceno um coroinha que estava ornamentando o presbitério:

- Por favor, eu gostaria de falar com o padre. - disse de modo cortês, mas decidido.

O acólito, um menino com dez anos, talvez menos, parou o que estava fazendo e ficou encarando Jesus. Na certa, desconfiado por nunca ter visto a cara dele por ali, ou espantado pelo pedido tão fora de hora. Jesus contava com essa confusão e disse, em seguida:

- Vai logo, menino! Eu não posso participar da Missa sem me confessar. Quer que eu incorra em pecado mortal?

Como Jesus esperava, o moleque largou as rosas de papel em cima do ambão e saiu em desabalada carreira pela porta da sacristia. Jesus foi até a lateral da nave, posicionando-se ao lado dos confessionários. Enquanto esperava, olhava para as paredes, os vitrais e as imagens retratando passagens do Evangelho e estações da Via Sacra. "Ao mesmo tempo em que nada mudou, tanta coisa está diferente", pensou. "Acho que o diferente estou eu, por isso que vejo e lembro de tudo que vivi aqui de uma outra forma".

O padre apareceu, a batina preta farfalhando ao passar pela porta estreita. O coroinha o precedia e, após olhar em volta e procurar um pouco, apontou Jesus para o padre. Jesus tocava os pés da imagem de Santo André, fingindo estar rezando, mas notava cada movimento do padre com a visão periférica. O sacerdote desceu as escadas, enquanto também examinava o estranho. O rosto do homem estava enrugado, muito maltratado pelo tempo. Aparentava bem mais idade do que realmente tinha. Parecia um idoso, embora não tenha passado muito dos cinquenta anos, pelas contas de Jesus. O padre andava encarquilhado, com dor a cada passo. Jesus nunca foi do tipo mal encarado ou intimidador. Por isso, o padre não pode sequer perceber que, ao se aproximar e falar com o estranho à sua frente estava assinando sua sentença de morte.

- A sua benção, padre, - disse Jesus, submisso e agradecido, pegando gentilmente a mão que o padre oferecia e beijando o anel de lápis-lazúli, com a imagem do Cordeiro de Deus estilizada.

- Que Deus lhe abençoe, meu filho. Vamos ao confessionário, se já tiver feito seu exame de consciência. Falta pouco para a Missa do Galo.

Se o padre já tinha considerado Jesus uma ameaça, agora não achava mais. Enquanto falava com Jesus, o padre examinava a decoração da igreja e gesticulava em direção aos poucos fiéis, relaxado e tranquilo. Parecia um pouco aborrecido e muitos poderiam dizer que isso se devia ao fato de ter que ouvir confissões atrasadas, pouco antes da celebração da Missa de Natal. Os bons fiéis católicos são orientados e confessar em suas paróquias, durante as semanas do Advento, com toda antecedência possível justamente para não incomodarem os padres na véspera de Natal. Mas Jesus sabia exatamente o motivo de aborrecimento daquele sacerdote encarquilhado, e que esse motivo não tinha nada a ver com atender a uma confissão fora de hora.

O NATAL E  A VOLTA DE JESUSOnde histórias criam vida. Descubra agora