Herói

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                        ~Artur~

Perto de minha casa estava tudo extremamente calmo. Calmo demais para o normal. O meu pai não estava no jardim, estava dentro de casa, portanto, e isso tornou as minhas desconfianças ainda mais altas.

Ele sempre fora pessoa de passar horas e horas a cuidar do seu jardim, mesmo antes de termos de nos esconder nos bosques. Corta, poda, rega, limpa, trata. Faz tudo o que um jardineiro de respeito faria, é mais ou menos isso que ele é, um jardineiro.

Entrei em casa com as minhas chaves e o meu pai estava na sala a jogar playstation 2, comprada também com o dinheiro roubado, o que também não era normal dele.

Dirigi-me à cozinha para ver se estava tudo em ordem e eis que me deparo com o chão todo molhado.

- Pai, o que é que se passou aqui na cozinha? - perguntei curioso, mesmo não estando à espera de que ele dissesse a verdade.

- Entornei água, só isso - respondeu serenamente enquanto se concentrava no seu jogo.

Subi para o meu quarto. Era a segunda porta da esquerda do segundo piso da casa. Estava tudo normal. Demasiado normal. O meu pai estava calmo, não o ouvira gritar desde que entrara. De certo algo se passava.

Conhecendo bem o meu pai, sabia que me escondia algo, sabia que algo se passava. Procurei por toda a casa por algo fora de comum, mas não encontrei nada até chegar ao quarto de arrumações.

Estava trancado e não havia sinais das chaves. Ouvi alguém bater na porta, pedindo por socorro, mas não havia nada que eu pudesse fazer. Encostei o ouvido à porta e falei pelo buraco da fechadura:

- Alice, és tu? - perguntei parecendo um completo idiota a falar com uma porta.

Ouvi um murmúrio que significava sim no meu dicionário e fiquei stressado. Dáva-me raiva aquelas atitudes do meu pai. Porque é que ele havia de fazer uma coisa dessas a uma miúda perdida dos pais?

Olhei pelo corredor a pensar onde estariam as chaves. Provavelmente era ele que as tinha. Desci e olhei para o sofá: lá estavam as chaves. Tinham caído do bolso.

Segui para a cozinha e pensei numa forma de chamar a sua atenção. Tinha de fazer algo que o irritasse suficientemente para o fazer levantar aquele rabo do sofá. Podia partir uma jarra, uma das mil e uma peças caríssimas que ele comprara com o dinheiro do roubo, mas não sei se era suficiente. Ou então podia...

Saí para a rua e decidi dizer ao meu pai que tinham pisado o seu jardim. Sabia que aquilo seria mais que suficiente para ele se levantar e provavelmente tentar bater-me pela mentira, era uma boa ideia. Voltei para dentro e gritei:

- Pai, pisaram as flores! - fiz uma expressão de pânico e ele fez o mesmo ao ouvir.

Quando saiu pela porta fechei-a atrás dele à chave. Ouvia braços pesados atacarem a porta, braços que me davam medo, mas tinha de me despachar. Peguei nas chaves e subi, libertando a Alice.

                            ~Alice~

Estava chorosa no escuro quando algo me deu alguma esperança: ouvi passos nas escadas. Talvez fosse simplesmente o velho a trazer-me comida ou água, mas mesmo assim, naquela situação qualquer sinal de vida era uma dádiva.

Senti uma silhueta aproximar-se da porta e comecei a bater na madeira, fazendo o maior estrondo que podia. Provavelmente aquilo era inútil. Sentia o pano apertar cada vez mais a minha boca quando uma voz do outro lado da porta se manifestou.

Era o Artur. O meu salvador e herói. Iria tirar-me dali porque tinha um bom coração, porque já antes mostrara compaixão para comigo quando me oferecera todo o lanche que tinha para comer naquele dia. Mas o que é que ele estava a fazer naquela perdida mansão de cobre?

De repente fez-se luz. Estava óbvio que aquela casa era a sua casa e aquele velho louco era o seu pai, que odiava estranhos. Tudo fazia sentido, menos uma coisa. Porque é que o pai dele me havia prendido?

Fiquei receosa mais uma vez, com medo de que o artur se juntasse ao pai no plano de me manter ali trancada. Era extremamente provável que o Artur estivesse do lado do seu progenitor e essa hipóteses deixava-me desesperada.

A silhueta desvaneceu no corredor e uma vez mais ouvi passos na escada, desta vez apressados. Já me preparava para aceitar o meu destino, para aceitar a verdade. O Artur não era meu amigo. Naquele momento a única coisa que ele era, sem dúvida , era filho do seu próprio pai e por isso nunca iria ficar do meu lado.

Era sócio do seu pai e iria alinhar em manter-me fechada talvez para sempre. Uma vontade enorme de gritar atingiu-me o peito, mas não conseguia, não com aquele lenço babado a impedir-me.

Voltei a sentar-me no que tinha a certeza ser um tapete, apenas com a luz vinda de debaixo da porta, que era pouca ou nenhuma. A verdade é que não podia esperar que ele se virasse contra o pai, um senhor já de idade.

Naquele momento eu tinha várias perguntas, tais como: o porquê de ele ter uma mansão rica e trabalhar numa fazenda, trabalho duro, o porquê de o pai dele me ter trancado, o porquê de ele me ter ajudado antes se agora me iria fazer uma coisa destas, por aí fora...

Passado algum tempo senti uma chave tapar o ponto de luz que vinha do buraco da fechadura e o meu peito encheu-se de ar. A chave rodou e o meu coração começou a bater a mil, como nunca antes.

Vi uma silhueta na porta e a cara do Artur, mais escura e assutadora do que nunca. Iria ele soltar-me ou apenas esfregar na cara o facto de ter piorado ainda mais a minha situação?

Little AliceOnde histórias criam vida. Descubra agora