Estábulo noturno

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                           ~Alice~

Estava em frente àquele grande lago de alcatrão, que tanto podia ser a minha salvação como não. Sentei-me na sua borda. Estava sem forças devido à fome e à sede que sentia e que eram insaciáveis. Fiquei à espera que algum veículo passasse. Qualquer um. Mas bem pude esperar.

Não havia forma de alguém passar por aquela estrada velha e desgastada. Nem sei bem quanto tempo lá fiquei, com o peito cheio de esperança. Talvez tenha ficado meia hora, talvez tenha ficado mais de uma hora, não sei.

A verdade é que não havia gente a passear por ali àquela hora e eu estava completamente feita. E o que é que era suposto fazer agora? Atravessar o alcatrão e infiltrar-me no outro lado do bosque ou seguir a estrada? E para qual dos lados?

Acabei por decidir entrar de volta no bosque, mas do outro lado. Atravessei a estrada, que não tinha passadeira, sem qualquer preocupação e, com um suspiro, voltei a pisar em território florestal. Daquele lado a floresta tinha outro cheiro.

Caminhei durante alguns minutos e nem podia acreditar na sorte que tivera em escolher aquele rumo. À minha frente jazia um pequeno lago. A água era pura e cristalina e, devido à pequena cascata que levava a um estreito curso de água, salpicava por todo lado.

Ajoelhei-me na macia terra relvada e toquei na água. Estava gelada. Ao inicio tive um pouco de receio de levar daquela água à boca. Podia estar poluída, embora não parecesse de todo. Mas lá cedi e levei aquela fonte de vitalidade à boca. A água gelou os meus lábios e escorreu pela minha garganta docemente.

Nunca provara uma água tão natural. E era triste saber que aquela seria a última vez que a provaria, provavelmente. Quando chegasse a casa de certo que nunca mais me deixarariam fazer nada sozinha nem ir a nenhum lado sozinha, mas é compreensível.

Agora tinha de matar a minha fome, mas não sabia como. Não iria conseguir caçar mesmo que quisesse, não tinha essa capacidade e tinha pena dos animais. É estranho como quando nos servem carne nem pensamos de onde ela realmente vem. Não pensamos no animal a ser morto apenas para que possamos deliciar-nos com a sua carne.

Continuei a andar um bocado, mas já estava mesmo muito cansada e sem saber onde arranjar comida. Pelo menos tinha a noção de que sobreviveria mais tempo sem comer do que sem beber água. Ainda bem que encontrara aquele pequeno lago.

Andei e andei e sentia-me como se estivesse num deserto: o calor estava a matar-me, embora houvesse muita sombra. Passado um pouco vi algo ao fundo da floresta. Algo que não era como tudo o que havia naquela floresta, era uma rede.

Arregalei os olhos. Redes eram feitas pelo Homem. Se havia uma rede significava que havia um terreno que teria um dono, fosse lá quem fosse. Aproximei-me da rede e pude ver algumas ovelhas que pastavam tranquilamente, sem preocupações.

Saltei a rede devagar, não queria assustar os pobres animais, e olhei em volta. Havia um estábulo ao longe. Erguia-se monstruosamente, invadindo o azul do céu, e chamando a atenção de qualquer pessoa que ali passasse. Era como um farol que dizia aos barcos para onde se dirigirem.

Caminhei até lá e abri a sua porta. Estava aberta, pronta para me dar as boas vindas. Dentro haviam dois cavalos, e palha, imensa palha, tal como é de esperar de um estábulo. Suspirei. Suspirei porque não havia ninguém ali. Não havia ninguém para me ajudar.

Pelo menos aquele era um bom sítio para passar a noite. De certo a palha seria mais confortável do que qualquer raíz de árvore, embora não fosse minimamente aconchegante em relação à minha quente cama. Procurei qual o melhor sítio para tirar uma boa sesta e decidi que seria no segundo andar, perdida na palha. Mas ainda era cedo.

Saí do reservatório de palha e dei uma volta pelo terreno. De facto não havia mais nada a não ser ovelhas e mais ovelhas. Mas isso não era mau de todo. Fui para perto delas porque precisava de carinho e talvez elas me pudessem dar.

De repente senti algo embater contra a minha canela: era uma ovelhinha bebé, cujas pernas ainda não estavam cem porcento aptas a desempenharem a sua função. Baixei-me e acarinhei a sua cabeça, que roçava em mim pedindo por mais. Ali passei um bom bocado, esquecendo-me de toda a situação em que me encontrava. Esquecendo a fome.

O sol pôs-se e eu decidi ir andando para dentro do meu abrigo, seguida pelo minha nova companheira de jornada: a pequena ovelhinha. Tentei que parasse de me seguir, juro que tentei, mas nada do que fiz foi capaz de manter o pobre animal longe de mim.

Entrou comigo para o estábulo. Peguei nela e levei-a até ao segundo andar, que ficava no topo de uma escada de madeira. Coloquei-a sobre a palha, o mais aconchegada que consegui e depois deitei-me a seu lado, olhando-a nos seus olhos carinhosos. Ela era linda. Era um amor.

Gostava tanto dela que a certo ponto comecei a contar-lhe como tinha ido parar ali, como se ela entendesse e compreendesse o que eu dizia. Talvez o fizesse porque nos seus olhos consegui ver simpatia, conseguia ver nela alguém que compreendia aquilo pelo que estava a passar.

Comecei mais uma vez a chorar ao pensar em quão surreal tudo aquilo era, mas logo me animei quando a pequena me lambeu as lágrimas. Ela não queria que eu chorasse, não queria ver-me triste. Voltei a chorar, mas desta vez a pensar na reação da pequena ovelhinha quando eu me estivesse a ir embora sem lhe dar justificações.

Chorei até adormecer, ouvindo os cavalos pousarem os seus pesados corpos sobre as suas patas, e acordei agitada e assustada perante aquilo que via em frente aos meus olhos.

Little AliceOnde histórias criam vida. Descubra agora