Fernanda não é flor que se cheire. Nunca foi e não finge ser nada diferente disso. Com a língua afiada e atitude afrontosa, faz da sua missão de vida afastar tudo e qualquer um que a irrite minimamente. E o problema é que tudo irrita a mulher que ap...
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O dia está lindo lá fora. Quase posso ouvir os pássaros cantarem qualquer que seja a melodia que escolheram para hoje. Quase posso sentir o cheiro doce das flores. Quase posso sentir o calor suave dos raios de sol tocando meu rosto. Quase.
Mas o único som que ouço é o de uma tosse constante, o único cheiro que me invade é o odor dos lençóis que precisam ser trocados, mais uma vez. A única coisa que toca meu rosto é o sorriso que tenho que forçar para fingir que está tudo bem. Porque tem que estar bem, não tenho outra escolha. Vovó.
Tiro o olhar da janela e volto minha atenção para a mulher sentada no sofá, o olhar fixo na televisão. Não acho que ela esteja assistindo qualquer coisa, não acho que processe nada do que está passando diante dos seus olhos, mas ela senta ali e encara a tela como se fosse a coisa mais importante da sua vida.
Gostaria de ter mais lembranças boas dela. Talvez eu tenha, mas é difícil resgatá-las quando as memórias recentes são recheadas de preocupações e o medo constante de perdê-la. Não lembro a última vez que sorri nessa casa, estando perto da minha avó. Fico sempre em um estado constante de semichoro, com lágrimas que mal se formam e nunca se derramam. Um aperto no peito causada pela sensação de impotência.
— Você pode ir, Fernanda.
Viro em direção à mulher que sempre tem um sorriso fácil no rosto. A pele morena não disfarça as olheiras tão bem quanto ela acha que o faz, mas não serei eu a dizer isso.
— Vou ficar mais um pouco, Lívia — digo e a enfermeira de meia idade acena com a cabeça, entregando a mim o copo com água e os comprimidos.
Vou ficar mais um pouco, mesmo que ela sequer lembre quem eu sou.
Sento-me no sofá ao seu lado e toco o dorso enrugado de sua mão com a ponta dos dedos. Como sempre, demoram alguns muitos instantes até que ela olhe na minha direção e, quando o faz, vejo pouco reconhecimento nas íris opacas que denunciam a idade.
— Seu remédio, vó — digo e seu olhar cansado e confuso cai para a minha mão. Mostro os comprimidos e ela volta a encarar a televisão. Vejo Laís ameaçar intervir, mas balanço a cabeça de leve, negando.
Não sei por que me torturo dessa maneira, sabendo exatamente qual é o resultado todas as vezes. Insisto, sabendo que não haverá um brilho súbito de reconhecimento em seus olhos. Ela não vai olhar em minha direção, lembrar quem eu sou em um surto de lucidez, dizer que me ama e que vai ficar tudo bem. Isso só acontece em filmes. Os flashes de lucidez são reais, é verdade, mas a cada dia se tornam mais escassos. Mais raros. Mais inalcançáveis. Quase impossíveis.
Chamo Laís, por fim, que consegue, mesmo sob protestos da minha avó, dar os comprimidos que ela precisa tomar. Vou até onde deixei minha bolsa e abro-a, tirando de dentro as caixas dos remédios para as próximas semanas, que deixo em cima da mesa. Abro a carteira e reconto as notas, dobrando-as antes de colocá-las na palma dela.