Capítulo 9 - A caixa vermelha

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- Vai ficar no celular o resto da noite ou vai jogar Overcooked comigo?

A última coisa que eu queria fazer era prestar atenção em Raul. Queria responder a mensagem de Ícaro desde que havíamos chegado em casa. Li e reli milhares de vezes as duas mensagens que ele me mandara – uma como se fosse eu, outra como ele mesmo. Até tive que pesquisar sobre "Caminhante sobre o mar de névoa". É uma pintura na qual um rapaz observa várias montanhas cobertas por névoa, como se buscasse uma aventura. Não sei se é bonito, mas definitivamente é impressionante. Confesso, não sei muito sobre arte ou pintura. Pelo que entendi, essa pintura meio que ilustra o romantismo na Europa. De literatura entendo mais do que de arte, e espero que Ícaro não tenha Werther como inspiração.

Li as mensagens novamente.

JP [20:34]: Você parece uma pintura.

Icarus [20:36]: Mais para "Caminhante sobre o mar de névoa" ou para "Aquele gatinho do Romero Britto"?

Queria muito ter algo inteligente a dizer, mas nada me ocorria. Havia mostrado a mensagem a Raul a contragosto, e ele também não fora de muita ajuda. Sinceramente, parecia querer evitar o assunto "Ícaro".

Raul nunca soube lidar com a minha sexualidade. Talvez se eu simplesmente dissesse que era hétero, ou gay, ou bissexual, ou qualquer coisa, ele fosse capaz de me ajudar. Raul sempre se deu melhor com rótulos do que eu. Eu sei que ele não tem um problema com minha sexualidade, seja lá qual ela for, mas ele não sabe trabalhar com incertezas.

Eu uso o rótulo de bissexual na maior parte do tempo, mas ele não me define completamente. Sempre soube que não me sentia atraído por pessoas por causa do gênero. Nunca me atraí por uma menina por ela ser garota, ou por um garoto por ser garoto.

Eu gostava de uma amiga minha e de Raul, Marcela, que tinha cabelos castanhos curtos encaracolados e cujo sorriso parecia várias pérolas brilhantes alinhadas no pescoço de um manequim. Nós conversávamos durante horas sobre nossas bandas indies favoritas e, quando a beijei (apenas uma vez, antes de ela decidir fingir que eu não existia) parecia que eu estava numa música do Fall Out Boy. Mas eu não a amava: me atraía apenas pela forma como a luz tocava nela.

Também me apaixonei por Santana, que ainda é meu amigo. Quando Raul e eu fomos expulsos do time de futebol, Santana nos encontrava para podermos jogar futebol juntos. Nós três nos juntávamos depois da escola aos seus quatro irmãos e mais alguns amigos da rua, e assim tínhamos mais do que pessoas suficientes para jogar. Depois de corrermos por horas e horas atrás de uma bola, ele vinha para minha casa para jogarmos futebol no videogame. Seu sorriso era como a lua cheia nas noites sem nuvens, mais pelo tamanho da lua do que por seu brilho. Tudo mudou, no entanto, quando ele foi para o seminário: queria ser padre. Ele nunca soube como eu me sentia.

Mas, confesso, Ícaro é a primeira pessoa transgênero que me atraiu.

- Eu juro pela vida de Neil deGrasse Tyson que irei quebrar seu celular se você não responder essa mensagem no próximo minuto.

- Eu não sei o que responder! Não quero dizer nada idiota...

- Bom, então nasça de novo.

Joguei meu chinelo em Raul.

- Já faz quase meia hora que estamos em casa, logo Ícaro vai achar que estou ignorando ele!

Raul me encarou. Estava deitado na minha cama, ainda com as roupas com as quais havia ido à pizzaria – eu já estava dentro de um moletom quentinho. Meu colar com o anel de meu avô havia sido guardado dentro do meu livro favorito, na minha estante. O olhar de Raul parecia sério, como se me avaliasse. Pela primeira vez ele não sabia que tipo de gracinha fazer para me fazer rir.

ICARUSWhere stories live. Discover now