Capítulo 10 - O filho dele

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Hoje é o quarto dia depois do acidente, o terceiro desde que estou consciente.

Quando acordei, depois de quase 16 horas entrando e saindo de um torpor estranho intercalado pelo estado de choque (segundo minha mãe), meu pai estava sentado ao meu lado. Pela postura, quase podia imaginar um fantasma montado em suas costas. Parecia extremamente miserável, magro e fraco, todo curvado daquela maneira. Assim que percebeu que eu estava acordado, seus olhos se iluminaram, mas seu corpo parecia torto da mesma forma. Mamãe não estava por perto naquela hora.

Minha mãe disse que eu tivera sorte – mas na verdade, eu havia apenas sido prudente. Eu usava o cinto de segurança, Raul, não. Ele havia caído em cima de mim, mas não havia me machucado muito. Fraturei o nariz e o cinto queimou meu peito, além de ter fraturado a mão esquerda, mas não era nada sério. Uma costela minha arranhara meu pulmão de leve, e eu estava em observação por isso, mas não era nada com o que se preocupar, segundo a enfermeira. Minha mãe só me contou que Raul quebrara as duas pernas e duas costelas no segundo dia.

Chorei muito nos primeiros dois dias, mas agora estou frustrado com meus pais. Não querem me deixar ver Raul, não me contam quanto tempo ele demorará para voltar a andar. Minha mãe disse que não é tão sério, meu pai não diz nada. Mas eu o ouvi brigando com tio Eduardo.

Nunca ouvira meu pai brigando com meu tio. Para todos os efeitos, eles tinham uma relação quase como a minha e de Raul, exceto que de fato eram irmãos. Sempre foram melhores amigos, se tornaram vizinhos depois de adultos, se casaram e tiveram filhos na mesma época. Pela primeira vez ouvi meu pai levantar a voz para meu tio, e meu pai era o irmão mais novo.

Meu pai não sabe que eu sei que eles brigaram. Ele culpa Raul pelo acidente, por estar dirigindo, mas principalmente culpa tio Eduardo por ter ensinado Raul a dirigir e por não ter percebido que Raul pegara o carro. Meu tio diz que sou tão culpado quanto Raul, e que quem se feriu mais foi o filho dele.

O filho dele se feriu mais.

Eu disse para minha mãe que não me lembrava do acidente, mas eu lembrava. Fora culpa minha – eu brigara com Raul, o provocara, pior, não tinha pego o celular no banco de trás. Raul tirara os olhos da rua por minha culpa, e agora ambas as suas pernas estão quebradas e eu não podia vê-lo.

A quarta/terceira noite no hospital chega, e minha mãe diz que poderei voltar para casa no dia seguinte, já que meu pulmão não foi perfurado. Só um arranhão, dissera a enfermeira. Minha mão doía, e meu nariz também, mas o vazio no meu peito era pior. Perguntava sobre Raul de meia em meia hora, mas as enfermeiras não diziam nada, e minha mãe apenas repetia a mesma coisa sobre as pernas dele.

À noite, sozinho no quarto de hospital, uma luz vermelha piscou no canto da minha visão. Uma luz azul piscou em seguida. Uma sombra comprida apareceu na minha frente. Tudo era extremamente branco, apesar disso. Meu corpo era músculos e dores, e eu não sabia diferenciar onde doía e onde eu não conseguia sentir nada. Um gosto ferroso prevalecia em minha boca, e a sensação de que minha cabeça ia se desprender do pescoço e rolar no chão era absoluta. Tentei me levantar, mas minhas pernas não me obedeciam.

Não estava mais no quarto do hospital, mas caído no asfalto molhado.

-... O ruivo vai ficar paralítico?

- Não dá para ter certeza ainda. Ele tentou se mexer enquanto esperava socorro e piorou a lesão. O moreno se machucou, mas não aconteceu nada demais. Vai ficar bem logo.

Moreno. Minha mãe sempre odiou essa palavra. É a palavra que as pessoas usam para me descrever quando não querem dizer negro. Sempre me ensinou a corrigir as pessoas que dissessem isso. "Nem sempre quem diz isso é racista" ela dizia, "às vezes eles simplesmente foram ensinados a falar assim. Então, ensine-os novamente".

ICARUSWhere stories live. Discover now