Capítulo 14 - Esaú e Jacó

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Fui dormir quase uma hora da manhã sem receber nenhuma mensagem de Ícaro. Confesso que fiquei pensando em nossa conversa por muito tempo ("Por que está tão quieto, João?", perguntou minha mãe durante o jantar), mas depois de algumas horas voltei a ficar verdadeiramente preocupado com Raul. Eu queria muito, muito falar com ele. Imaginei-o na cama do hospital, sentindo dor e com ambas as pernas enfaixadas, e me senti mal por ter praticamente me esquecido dele enquanto dava atenção para Ícaro.

Eu gostava de Ícaro. Ele era lindo e divertido, e a ideia de vê-lo dançar me deixou sem graça mais do que meia dúzia de vezes durante o dia. Mas toda vez que pensava nele explicando para seus pais sobre as fitas do meu avô e sobre como não sabíamos como tocá-las eu sentia um frio na barriga. Não de antecipação, mas de traição. Como se eu devesse estar compartilhando as fitas com Raul, meu primo, meu irmão, e não com um garoto que eu acabara de conhecer.

Dormi mal. Acordei de madrugada várias vezes, tanto espontaneamente quanto para tomar remédios para a dor. Para ser honesto, a dor na mão e no nariz nem era tão ruim assim. Mas eu não queria sentir nada, mentalmente falando.

Sonhei que via meu avô, mas ele parecia errado. No sonho, ele tinha os olhos menos acinzentados, mais verdes. Em vez de não ter uma das pernas, ele não tinha as duas. Só quando tentei conversar com ele percebi que não era meu avô – era Raul idoso.

Levantei cedo, mesmo não precisando ir para a escola. Eu podia ir, mas minha mãe disse que eu não precisava ter pressa para voltar essa semana. Decidi não questionar sua decisão. Como era sexta, decidi não ir. Fazia tanto tempo que eu não ia para escola.... Eu deveria estar preocupado com os vestibulares. Eu estudara tanto desde o início do ano, não podia deixar tudo de lado agora.

Minha mãe percebeu que eu estava de pé às sete da manhã ao me ouvir tomando banho. Bateu na porta do banheiro.

- Querido, você vai para a escola hoje?

Respondi gritando, para que ela me ouvisse através do barulho do chuveiro:

- Na verdade, pensei que talvez papai pudesse me levar para ver Raul.

- Seu pai vai trabalhar hoje. Ele está saindo de casa agora. E eu vou sair às oito e meia para resolver umas coisas do trabalho.

Ah, droga. Meus pais tinham uma vida. Quase havia me esquecido. Assim que saí do banho, anunciei para minha mãe que iria ver Raul, nem que fosse de ônibus. Ela não me proibiu, mas me fez tomar café da manhã antes.

Coloquei uma roupa bastante simples – não queria parecer bem demais para Raul. Calça jeans preta, um moletom com zíper preto e uma camiseta cinza por baixo. Inspirado por Ícaro, coloquei meu converse vermelho. Minhas tranças estavam bagunçadas e eu não estava com paciência para arrumá-las. Amarrei o cabelo num coque e peguei a caixa de meu avô. Vi a caixa de chocolates de Ícaro e decidi levá-la também.

No caminho do hospital – o ônibus demoraria pelo menos meia hora para me deixar lá – eu pesquisei um pouco sobre as tais banda kpop que Ícaro mencionara. Ouvi algumas músicas e tentei imaginá-lo dançando-as, mas achei as coreografias complicadas demais.

Assim que o ônibus parou no ponto perto do hospital, todos os pensamentos sobre Ícaro desapareceram de minha mente, e senti um frio na barriga ao pensar em ver Raul. Não sabia o que diria para ele, e subitamente pensei que talvez tivesse sido uma ideia estúpida trazer as fitas, pois havíamos brigado por causa do ciúme dele, mas eu já estava ali e queria tanto vê-lo.

Assim que entrei na recepção vi minha tia, mãe de Raul, conversando com uma enfermeira. Percebi que era a primeira vez que a via desde o acidente. Ela correu até mim e me abraçou, perguntou como eu estava e se eu queria ver Raul. Eu respondi que sim.

ICARUSWhere stories live. Discover now