- Seu avô teve câncer no cérebro – declarou meu pai – por quê quer saber?
Quase deixei o garfo cair. Demorei quase o jantar todo para tomar coragem de perguntar aos meus pais sobre meu avô. Um turbilhão de emoções se instalou dentro de mim – era a tempestade outra vez. Tentei continuar a conversa normalmente.
- Por acaso ele estava... Pouco são... Antes de morrer?
- Não sei, confesso que eu não tive muito contato com ele antes dele morrer – respondeu meu pai. Minha mãe estava em silêncio.
- Ah, entendo...
- Isso tem a ver com aquelas fitas que você recebeu?
Não havia sentido em mentir: - Sim. Eu ouvi a primeira fita, mas meu avô conta uma história muito absurda, achei que talvez ele estivesse... Não sei, delirando, talvez.
- Ah, é? O que ele conta?
- Fala que era soldado na época da ditadura militar.
- Seu avô, soldado? – Meu pai riu alto. Minha mãe franziu a testa. – Ah, ele era a favor da ditadura, é verdade, mas ele foi caminhoneiro a vida toda. Digo, até perder a perna num acidente. Ele caiu num buraco de um esgoto a céu aberto na estrada e sua perna necrosou por causa de um ferimento...
- Everton, estamos jantando... – minha mãe intercedeu.
- Bom, enfim, talvez ele estivesse misturando ficção com realidade. Seu avô sempre foi um grande leitor, isso ele era. Talvez tivesse lido um livro sobre a ditadura na época. Ou talvez estivesse revisando uma matéria jornalística sobre o assunto? Ele ainda fazia uns freelance, mesmo velho.
- Você disse que ele era a favor da ditadura? – Perguntei, levemente horrorizado. Acho que essa era a parte mais difícil de engolir da história toda, principalmente por que meu pai dizia que era verdade.
- Sim. Mas ele era um produto da época em que nasceu, filho, então tente não pensar menos dele por isso.
Minha mãe torceu o nariz para o comentário, mas eu apenas assenti. Não consegui mais jantar. Ajudei minha mãe a lavar a louça e fui para meu quarto.
.
- Meu pai disse que ele teve câncer no cérebro – eu disse para Ícaro pelo telefone. Já era dez e meia da noite. – Mas não soube dizer se ele teve demência.
- Hmmm... – Ícaro murmurou. Parecia sonolento. – Câncer no cérebro pode ser exigente. Às vezes afeta as pessoas de formas assustadoras. Pode ser que ele tenha sido afetado e não soubesse separar suas lembranças reais de coisas que leu ou viu na TV?
- Meu pai sugeriu algo parecido.
- Você contou a ele sobre a fita?
- Ah, não, só por cima. Acha que eu não deveria contar?
- Talvez você devesse ouvir tudo antes de contar – Ícaro sugeriu.
- Tem razão.
- Enfim... – Ícaro bocejou – Te vejo segunda? Sabe se o Raul vai voltar logo para a escola?
- Segunda? – Ignorei a pergunta sobre Raul de propósito. Ainda estava chateado com ele por ter me expulsado do hospital. – Eu estava pensando que podíamos sair juntos amanhã... – enrubesci. E se Ícaro me achasse grudento por isso? Droga, droga, droga!
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ICARUS
Teen FictionRaul sabe jogar futebol, João tenta. Raul é bonito e popular, João se esforça para não chamar atenção. Raul tem uma personalidade dramática e energética, João é reflexivo e recluso. Primos, criados juntos desde a infância, João e Raul nunca se impor...