Capítulo 16 - Os demônios nos detalhes

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        - Seu avô teve câncer no cérebro – declarou meu pai – por quê quer saber?

Quase deixei o garfo cair. Demorei quase o jantar todo para tomar coragem de perguntar aos meus pais sobre meu avô. Um turbilhão de emoções se instalou dentro de mim – era a tempestade outra vez. Tentei continuar a conversa normalmente.

- Por acaso ele estava... Pouco são... Antes de morrer?

- Não sei, confesso que eu não tive muito contato com ele antes dele morrer – respondeu meu pai. Minha mãe estava em silêncio.

- Ah, entendo...

- Isso tem a ver com aquelas fitas que você recebeu?

Não havia sentido em mentir: - Sim. Eu ouvi a primeira fita, mas meu avô conta uma história muito absurda, achei que talvez ele estivesse... Não sei, delirando, talvez.

- Ah, é? O que ele conta?

- Fala que era soldado na época da ditadura militar.

- Seu avô, soldado? – Meu pai riu alto. Minha mãe franziu a testa. – Ah, ele era a favor da ditadura, é verdade, mas ele foi caminhoneiro a vida toda. Digo, até perder a perna num acidente. Ele caiu num buraco de um esgoto a céu aberto na estrada e sua perna necrosou por causa de um ferimento...

- Everton, estamos jantando... – minha mãe intercedeu.

- Bom, enfim, talvez ele estivesse misturando ficção com realidade. Seu avô sempre foi um grande leitor, isso ele era. Talvez tivesse lido um livro sobre a ditadura na época. Ou talvez estivesse revisando uma matéria jornalística sobre o assunto? Ele ainda fazia uns freelance, mesmo velho.

- Você disse que ele era a favor da ditadura? – Perguntei, levemente horrorizado. Acho que essa era a parte mais difícil de engolir da história toda, principalmente por que meu pai dizia que era verdade.

- Sim. Mas ele era um produto da época em que nasceu, filho, então tente não pensar menos dele por isso.

Minha mãe torceu o nariz para o comentário, mas eu apenas assenti. Não consegui mais jantar. Ajudei minha mãe a lavar a louça e fui para meu quarto.

.

- Meu pai disse que ele teve câncer no cérebro – eu disse para Ícaro pelo telefone. Já era dez e meia da noite. – Mas não soube dizer se ele teve demência.

- Hmmm... – Ícaro murmurou. Parecia sonolento. – Câncer no cérebro pode ser exigente. Às vezes afeta as pessoas de formas assustadoras. Pode ser que ele tenha sido afetado e não soubesse separar suas lembranças reais de coisas que leu ou viu na TV?

- Meu pai sugeriu algo parecido.

- Você contou a ele sobre a fita?

- Ah, não, só por cima. Acha que eu não deveria contar?

- Talvez você devesse ouvir tudo antes de contar – Ícaro sugeriu.

- Tem razão.

- Enfim... – Ícaro bocejou – Te vejo segunda? Sabe se o Raul vai voltar logo para a escola?

- Segunda? – Ignorei a pergunta sobre Raul de propósito. Ainda estava chateado com ele por ter me expulsado do hospital. – Eu estava pensando que podíamos sair juntos amanhã... – enrubesci. E se Ícaro me achasse grudento por isso? Droga, droga, droga!

ICARUSWhere stories live. Discover now