Capítulo 9

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Terminaram de descarregar as caixas pequenas em silêncio. Deixaram-nas ao lado do altar e apenas pararam quando se depararam com apenas duas caixas longas e uma pequena, ambas lacradas. O sol já não ardia forte, muitas nuvens já começavam a cobrir o céu e o vento era mais fresco. Ambos ficaram parados olhando para uma terceira caixa longa, vazia. Graham sabia que era ele que deveria estar ali dentro. Mesmo que ele não estivesse já morto quando Bastian o arrastou naquela manhã, oras, "acha que posso aparecer na frente das pessoas e socializar com elas?", "não posso permitir que ao menos pensem em me seguir" foi o que ele dissera na ultima conversa.

- Que perda é essa que você ainda não superou? - perguntou lentamente.

Bastian não respondeu nem ao menos se moveu.

- Por que me trouxe vivo até aqui? - insistiu.

Bastian tirou um lenço amarelado do bolso e secou sua testa suada e deu uma longa olhada para a entrada da árvore. Seu olhar era de quem sentia uma constante dor.

- Vamos andar - disse puxando Malhado pelas rédeas. - Me acompanhe e te explico.

A passos lentos, Graham aguardou que Bastian começasse a falar. O velho parecia estar resolvendo uma confusão interna para escolher as palavras certas.

- Você me perguntou mais cedo sobre como eu comecei a trabalhar para Eméreter. Não foi por vontade própria, posso lhe garantir. Não que eu esteja reclamando.

Silêncio novamente. Bastian não tirava os olhos do chão e Graham aguardou pacientemente.

- Minha esposa morreu ainda jovem, deixando apenas um menino. Meu menino. Ela deu a vida dela pela a dele, nem chegou a conhecer o próprio filho. Mas eu cuidei bem dele por ela, cuidei como se ele fosse a coisa mais valiosa da minha vida porque ele realmente era - outro silêncio. - Mas as crianças crescem e a teimosia cresce junto. Assim como qualquer outra pessoa ele também queria atravessar a ponte e descobrir o que havia do outro lado. "Aquele castelo" ele dizia desde pequeno, quando fugia para o rio, "eu ainda vou entrar naquele castelo, quero conhecer quem mora lá".

"As crianças daqui sempre fantasiam sobre o que há naquele castelo. Gigantes, dragões e toda essa sorte de coisas. Crianças fantasiam sobre tudo, especialmente sobre o que lhe é proibido, e sempre fomos proibidos a deixar essa vila. Não foram apenas seus padres e construtores que morreram por aquela ponte. A diferença é que aqui deste lado o número foi bem menor. Porém, meu filho sempre quis poder fugir e descobrir um jeito de atravessar. Eu também quis, por um tempo. Planejávamos nossa fuga quando ele se tornou mais velho, até que a ideia chegou aos ouvidos de Eméreter e ela abriu meus olhos. Me mostrou como estaríamos sendo ingratos com toda a proteção que ela nos dava, fugindo para o lado inimigo. Estava prestes a ser declarado traidor então tentei convencer meu filho a não deixar a vila, era perigoso demais do outro lado. Tínhamos tudo o que precisávamos aqui, afinal. Mas ele não me ouvia, me chamou até de covarde. Se desculpou depois, é claro. Entretanto, numa noite festiva, quando comemorávamos a cura de um de nossos doentes, ele acabou bebendo demais, ficou com a cabeça tomada de ideias malucas. Pegou o cavalo de madrugada e saiu em direção ao rio. Eu fui atrás assim que percebi mas não fui rápido o bastante.

Estavam parando em frente a uma das casas que Graham havia reparado anteriormente. Duas lágrimas caíram e Bastian escondia os olhos com o mesmo lenço amarelado. Secou-os e prosseguiu.

- A cena era horrível. O cavalo dele estava agonizando na água com vários cortes pelo corpo. Foi levado pela correnteza. Sem pensar duas vezes entrei naquela água enquanto meu menino se afogava, não muito longe da margem. Várias raízes rateiras estavam em volta de sua garganta. Lutei contra tudo, contra toda aquela força inescrupulosa que habita aquele rio. Quase morri junto, fiquei com vários cortes profundos - levantou suas mãos cheias de cicatrizes compridas que se estendiam dos dedos para além do braço por baixo das mangas. - Mas algo me ajudou a tirar ele vivo de lá.

"Havia um grande ferimento próximo à sua têmpora, devia ter batido a cabeça contra alguma pedra ou parte da ponte. Era sangue pra todo lado. Ele não respondia mais aos meu chamados e tentativas de reanimá-lo mas eu sentia seu coração ainda batendo, sabia que havia esperança. Oras, quantas pessoas Eméreter já não havia salvado da morte? - um pequeno riso que Graham julgou ser de desgosto. - Coloquei-o no meu cavalo e galopei o mais rápido que pude de volta, procurei desesperado por ela. Mas logo ela soube que ele havia traído a sua confiança, se recusou a salvá-lo como castigo. Implorei de joelhos, queria ele vivo de qualquer forma. Me coloquei ao dispor dela para o que ela quisesse, qualquer coisa para salvar a vida de meu filho. Então ela disse que eu serviria somente a ela em troca, que minha vida seria dela. Esse seria o trato e aceitei sem pestanejar. Ela levou-o para dentro daquela árvore, colocou-o deitado naquele altar e me mandou voltar quando o sol amanhecesse. Amanheci sentado do lado de fora daquela árvore esperando que ele saísse andando lá de dentro, curado. Mas não foi o que aconteceu.

"Quando pude entrar ele ainda estava lá, deitado, pálido de olhos fechado, porém já não sangrava mais. As marcas em seu pescoço tinham desaparecido, aquele grande ferimento em sua cabeça já não estava mais aberto. Pus minha mão em seu rosto e o senti aquecido, pus a mão em seu peito e senti seu coração batendo. Esperei que ele acordasse. Eméreter me deixou a sós com ele e esperei e aguardei e ele não acordava. Metade do dia havia se passado e nada dele despertar, chamei-o, sacudi-o. Com minhas próprias mãos abri suas pálpebras. Seus olhos estavam vidrados, mirando o nada. Entrei em desespero e chamei Eméreter de volta. Ela disse que a pancada na cabeça havia sido forte demais. Ela conseguiu mantê-lo vivo, a qualquer custo como pedi, mas não podia trazê-lo de volta do coma.

Mais lágrimas caíram, uma atrás da outra. Graham não tinha certeza se deveria falar algo ou não.

-Meu menino estava ali, de coração batendo e respirando - continuou em tropeço aos soluços -, porém, não estava mais comigo. Levei-o para casa, o deixei deitado em sua cama esperando que em algum momento ele voltasse a falar, andar, me chamar de pai novamente. Mas esse dia nunca chegava. Durante semanas eu acordava e ia dormir e ele continuava do mesmo jeito. Conversava com ele, passava a madrugada ao lado de sua cama sem que ele me desse uma resposta. Não importava quantos fios de cabelo eu arrancasse de desespero, ele nunca me respondia. Meio morto, meio vivo, não aguentava mais vê-lo daquela forma. Chamei Eméreter para fazermos uma oração... quis que ele partisse em paz, na companhia de sua mãe - secou suas lágrimas com as costas de sua mão mesmo e olhou para a árvore ao longe. - Mesmo depois disso mantive minha palavra. Ela o salvara da morte como pedi, devia minha vida à ela, era a minha palavra. Ela me deu esse trabalho e, ironicamente, o segredo pelo o qual meu filho morreu.

- Isso é cruel!

- Isso é a vida - disse decidido. - Você não faz ideia do quanto me lembra ele. Altura, físico, jeito de falar, jeito de andar - abanou a cabeça desolado. - Eu não pude fazer. As ordens de Eméreter sempre foram claras: não ser visto, não atrair ninguém para a ponte, matar se for preciso. Como eu queria que meu filho tivesse se levantado e me surpreendido quando o arrastei para fora daquele maldito rio da mesma forma que você me surpreendeu quando o arrastei.

- Eu sinto muito - foi a única coisa que conseguiu dizer. - Muito mesmo - pousou sua mão no ombro direito de Bastian e apertou de forma reconfortante. - E agradeço por ter me deixado vivo.

Um leve sorriso surgiu no rosto do velho. Uma trovoada distante fez os dois voltarem ao presente e se dar conta de onde estavam parados.

O sol já havia sumido quase que completamente. Graham olhou ao redor e observou melhor a casa à sua frente. Não era muito grande, mas era alta, com o telhado simples, com telhas planas. Toda pintada de preto e uma grande porta de carvalho, toda trabalhada em detalhes, encontrava-se fechada.

- Suponho que esta seja a casa velada - disse Graham.

- Correto - Bastian bateu três vezes na porta. - Venha, vamos levar os corpos da carroça para dentro.

O Reino OcultoOnde histórias criam vida. Descubra agora