Parte 6/10 - Olhos e Pílulas

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O silêncio sobrenatural, já esperado, nos encontrou do lado de fora, impedindo que nossos passos soltassem qualquer ruído. A pressão nos ouvidos se fez presente novamente. Mas agora eu até me sentia satisfeita com ela, como se meus pensamentos ficassem mais claros. Não sei se aquilo era possível, mas sentia muita vontade de descansar em um lugar calmo para variar. Eu poderia me sentar ali mesmo na calçada e aproveitar o silêncio, se não fosse a ameaça iminente do Esquecimento.

— Nós precisamos tomar cuidado – eu disse o mais alto que pude –, não vamos ouvir quando os servos do Oblívio se aproximarem

— Sua voz... – começou Daniel, o brilho de neon na porta da boate dava um tom rosado ao rosto dele.

— Sim, aqui fora o silêncio reprime qualquer som. Precisamos olhar em todas as direções enquanto caminhamos. Não sabemos de que lado eles podem aparecer.

Débora olhava para cima na direção do olho gigante, roendo as unhas. Olhei para ele também. Parecia que nos observava atentamente, sem nunca piscar. Até pude distinguir as artérias na parte branca da retina trovejando na direção da íris escura, como relâmpagos vermelhos.

— Então... aquilo é o Oblívio? – indagou Daniel.

— Não olhem para ele – eu disse desviando o olhar. – É isso que ele quer, nos distrair até que seus servos cheguem e nos peguem de surpresa.

Examinei os dois lados da avenida para ver se alguma das criaturas já havia chegado, mas não havia nada, os postes continuavam a emoldurar os dois lados da rua em uma fileira de luzes brancas que se estendiam a perder de vista, até parecerem se unir no horizonte.

Nós caminhamos devagar pela calçada enquanto observávamos os estabelecimentos. Eu cuidava da nossa retaguarda, procurando qualquer movimento suspeito. Mesmo acompanhada, a sensação de estar sozinha parecia se acomodar em meu íntimo, como se fosse um hóspede que há muito já se sentia em casa. Mas, ali fora, a sensação mais evidente era a de estar sendo julgada silenciosamente. Vendo que os outros pareciam se sentir da mesma forma, tive vontade de falar qualquer bobagem para quebrar a sensação.

— Que lugar estranho – disse Daniel, parecendo ler meus pensamentos -, parece uma cidade fantasma.

Débora deu sua familiar risada anasalada.

— É exatamente o que ela é, mas nós é que somos os fantasmas.

O poste bem acima de nós piscou de repente, fazendo a luz tremeluzir por alguns instantes. Nós olhamos um para o outro, nossos rostos sumindo e reaparecendo em milésimos de segundo, e depois olhamos para cima, assustados. Até que a luz voltou a se estabilizar e devolveu o aspecto simétrico da rua.

— Será que devemos avisar a prefeitura para trocar essa lâmpada? – perguntou Daniel.

Nós começamos a rir ao mesmo tempo, tentando disfarçar o nervosismo.

— Detesto ficar aqui fora – disse Débora, cruzando os braços e segurando os ombros –, detesto aquela coisa no céu e não suporto ficar nesse silêncio sozinha com meus pensamentos. Será que não podemos entrar em qualquer estabelecimento?

Voltei a olhar para trás, até onde os postes iluminavam não havia nada de anormal.

— Aquilo parece um teatro – disse Daniel apontando para um estabelecimento largo, com alguns degraus que subiam para uma entrada ladeada por colunas de mármore. – O que acham de dar uma olhada?

A Cidade do SilêncioOnde histórias criam vida. Descubra agora