Capítulo 3

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O Grande Ritual é uma celebração anual para nos lembrarmos de como tudo começou. O nosso verdadeiro propósito e nossas limitações.

– Odeio esse ritual.- Eu resmunguei baixinho enquanto Rashne penteava meus cabelos negros.

–Sabe que não deve dizer isso.­- A velha emburrada me acertou de forma bruta com a escova no braço.

– Eu já conheço palavra por palavra daquele discurso estúpido da Irina. – Rashne me acertou mais duas vezes no braço com muito mais força. Estava tão habituada com esse tipo de comportamento, que isso nem me afetava mais. Ela sempre dizia " se a Grã-Sacerdotisa Irina ouvir isso, fará dez vezes pior", então me castigava.

– Você vai ouvi-la, sorrir e aplaudir. É assim que são as coisas por aqui e assim que você deve fazer.- Ela sempre falava comigo com uma cara de desgosto. Nunca sorria. – Não se esqueça das regras e principalmente de quem é, se não eles farão você se lembrar rapidamente. Cumpra o seu papel no ritual e volte para a casa.

"Eles", de quem a Rashne se referia, eram o Trio de Governantes, composto pela Grã-Sacertotisa, os dois Grão-Féericos que sentavam-se de cada lado do trono. Odiava os três.

Parei de pensar no ritual. Não valia apena ficar me torturando antes da hora, até porque a noite seria uma tortura por si só. Deixei que Rashne me escovasse, me vestisse e me paparicasse como se fosse uma boneca. Quando terminou ela me arrastou para o espelho grande que ficava preso a parede, para que eu pudesse ver todo o meu corpo e o seu trabalho. O seu reflexo era carrancudo, mas com um ar de satisfação. Ela era boa em seu trabalho.

Meu vestido era espetacular. Ele foi feito para cobrir todo o meu corpo, se ajustando e colando a cada curva, até chegar na altura dos joelhos, onde ele ficava solto e esvoaçante. Na parte de cima tinha um tom rosado, como as flores de cerejeira. Quando chegava na cintura o tom rosada se mesclava com um tom laranja, até chegar aos meus pés onde as cores se misturavam e pareciam as cores do céu no pôr do sol. Minhas maçãs do rosto estava levemente rosadas e minha boca estava no mesmo tom. Na pálpebra tinha uma linha preta que demarcava meus cílios e um tom levemente dourado que deixavam meus olhos azuis, brilhosos e com vida. No topo da minha cabeça tinha uma coroa de diferentes flores brancas e delicadas. Eu estava o retrato perfeito da Senhora da Primavera. E isso fez meus dentes trincarem.

– Já se olhou muito. Venha. – Rashne me arrastou pelo braço de uma forma nada gentil até a comoda que ficava do outro lado do quarto. Ela abriu a gaveta e tirou algumas jóias, aproximando-as do meu rosto para analisar a que ficaria melhor para esse espetáculo. Colocou vários anéis em meus dedos e todos de pedras brancas. E no meu pescoço um colar que parecia uma linha bem fina de ouro e o pingente era uma delicada rosa incrustada de pedras brancas. – Bem melhor. – Ela suspirou. Eu sabia que esse dia era tenso, não para para nós, mas para todos na Corte. Todos queria agradar os governantes. Suas cabeças no pescoço dependiam disso.

Rashne continuou me conduzindo. Descemos os lances de escada enquanto ela cuspia todos as recomendações para aquela noite. Ela conhecia meu histórico de rituais ruins. Como em uma vez que tive a brilhante ideia de me esconder durante a cerimônia, para não participar do Ritual Sagrado. Não demoraram muito para encontrar. O castigo deveria ter a participação de todos, pois segundo Irina todos foram afetados pela minha indisciplina e egoísmo, então cada féerico que vivia nas cortes teve a honra de me dar uma chicotada. Meu vestido fora rasgado por ela na frente de todos, minhas costas ficaram expostas e vulnerável. Depois de sentir a  décima chicotada rasgar minha costela, eu apaguei. E Ela teve a bondade de me deixar assim até que todos terminassem. Depois prosseguiram o Ritual. Não andei por uma semana. Eu era apenas uma criança.

Na porta principal da mansão, estava esperando por mim um carruagem bastante exuberante. Havia dois cavalos brancos com crinas adornadas por flores e um cocheiro, certamente mais um féerico desconhecido que vivia na Corte. Ele foi gentil ao abrir a porta me a ajudar a entrar. A carruagem começou a se mover, e poderia muito bem estar ouvindo uma marcha fúnebre pelo trajeto. Expulsei as lembranças que queriam me atormentar e inclinei para olhar a paisagem pela janela. O céu estava negro e salpicado de estrelas. Fechei os olhos e suspirei.

Não demorou muito para chegarmos no Templo. Ele estava todo adornado e podia sentir o cheiro de comidas e bebidas a quilômetros dali. Uma pequena uma distração para o que iria acontecer conosco. O mais importante ali era o ritual. A essência e o  equilíbrio das Cortes, a única coisa que nos mantia vivos nesse lugar.

O féerico me ajudou a descer da carruagem e consegui captar leve odor de medo no ar, que eu fingi não perceber. Eu murmurei um obrigado que ele nem se deu o trabalho de responder. Caminhei em direção ao templo sozinha, e me permiti olhar mais uma vez para o céu, e eu vi sombras negras se mesclando com a lua. Sorri e caminhei de forma vagarosa e despretensiosa para o templo. Meus pés vacilaram nos primeiros degraus da escada. Minhas costas marcadas pinicaram, no roçar do tecido do vestido. Marcas que nunca me deixaria esquecer, e pensei seriamente, mesmo sabendo das consequências, em sair correndo daquele lugar horrível.

– Não iria conseguir correr por muito tempo. – Aquele hálito gelado e amigo, roçou de forma provocadora a minha orelha.

–Você não consegue mesmo ficar longe. – Virei para trás para me deparar com um macho... espetacular sorrindo para mim. Glaciem estava vestindo uma túnica off withe, com detalhes brancos salpicados em alguns pontos nas extremidades, que fazia parecer que estava sujo de neve, a cor de sua calça era a mesma da túnica e exibia os mesmo detalhes. Seu cabelo branco estava penteado para trás e parecia estar mais branco do que nunca. Me recuperei rapidamente do meu estupor e devolvi o sorriso. – Nem longe da minha mente, a propósito. - Puxei o ar de forma lenta e rezei ao caldeirão para que ele não notasse esse comportamento.

–Um lugar bem interessante para estar.- Seu olhar flutuou de cima para baixo analisando meu vestido pelo menos umas duas vezes. Me senti completamente exposta e minhas bochechas coraram traiçoeiramente. Não demorou muito para que seus olhos pratas fixassem aos meus. Ele sorriu, mas não seu sorriso debochado de sempre, sorriso genuíno que  fez com que eu me sentisse que não estava só. Pelo menos não essa noite.

– Você está deslumbrante esta noite Aylla. - Ele puxou meu braço, enroscando-o ao seu em um convite silencioso para subirmos a escada. – Mas o que  seu mestre diria se soubesse o quanto você se permitiu estar vulnerável longe de sua Corte? – Glaciem e eu não eramos os únicos daemati que existiam nas cortes eu não queria corria o perigo de ter outra pessoa tentando vasculhar a minha mente, não uma que não fosse o próprio Glaciem. E no fundo, bem fundo eu gostava disso. 

-Nada.- eu respondi com desdém. – Ele nunca tem muita a dizer mesmo. -Ergui os escudos mesmo assim. Com todas as coisas que esse lugar me faziam pensar, eu não estava afim de compartilhar nem com ele.

Glaciem e eu demos risadas enquanto entravamos no templo. Sua risada era rouca e fria, e tenho certeza de que foi isso que fez com que os guardas que estavam no portal, nos olhassem de esguelha. E antes de chegarmos ao salão principal, senti uma onda fria acariciar meu escudo, uma caricia longa e lenta, num gesto convidativo para que eu permitisse que ele entrasse, o que eu permiti de bom grado. Não sinta nada. Sorria, beba e dance. Vai passar mais rápido se você para de se importar.

É o que sempre nos dizem. Eu cantarolei em resposta e tornei a erguer o escudo. De forma firme, blindado. Não deixaria ninguém mais entrar.


A Corte dos EsquecidosOnde histórias criam vida. Descubra agora