Como o mais doce néctar da flor de melão-de-são-caetano dos jardins que um dia chamei de lar, o sangue deslizou pela lâmina da espada, viscoso e amarelado. O odor característico da espécie emanou do corpo recém cadavérico, estirado no chão coberto por gramíneas. Mais uma fase havia se encerrado. Limpei o gume de minha arma com a própria pelagem de minhas patas superiores, enquanto, de forma simultânea, o escudo eletrônico da arena se desfazia outra vez; a prova de que os corpos no chão haviam se entregado totalmente ao sono eterno.Observei meus adversários vencidos. Ao longe, a representante das borboletas jazia com um corte profundo no peito e parte da asa esquerda decepada. Mas era caído sob meus pés que eu encarava o adversário mais ágil e difícil de vencer até o momento. O representante das lacraias só havia se entregado após minha espada tirar-lhe as suas armas naturais: os ferrões venenosos. Agora, o ser de coloração marrom-enegrecido expelia do abdômen as suas vísceras, com algumas de suas trinta e duas patas faltantes. Decepar membros era o que melhor sabíamos fazer.
— É inviável a sua forma de agir, Shix — escutou a voz grave e séria de Poldron, meu parceiro de batalhas.
— Deu certo no fim — rebati. — É o que importa.
Poldron moveu sua cabeça esverdeada, em desacordo. O representante dos louva-a-Deus tinha suas preferências ao executar seus adversários, optava sempre por emboscadas sutis e rápidas, evitando longas batalhas. Não era, contudo, o meu jeito de agir; o que não impedia Poldron de tentar moldar-me.
— Quase custou as nossas vidas, a sua falta de cuidado — argumentou, afiado. — Os próximos adversários terão cada vez mais perícia, não podemos agir como se estivéssemos na primeira fase disso tudo. — O louva-a-Deus embainhou sua espada e virou as costas para mim, insinuando que não queria mais ficar ali, próximo aos corpos da dupla perdedora. — Não se esqueça do porquê estamos neste lugar.
Resmungando, seguiu-o. Resmunguei e resmungaria outras mil vezes se assim fosse preciso. Não suportava quando o ser verde e de traços dólicos punha o meu empenho a prova. Não era necessário que ninguém me lembrasse dos motivos, me recordava bem de todos os segundos que havia estado ali, desde o primeiro.
Fora como se meu corpo se desintegrasse. Em um instante, vivia a minha vida normal de barata, perambulando entre os moradas humanas em busca de alimento fácil. No outro, estava em um local totalmente branco, que se estendia infinitamente no horizonte, sem nenhuma partícula de poeira que pudesse macular a lisura do terreno. Não demorei a perceber que meu corpo não era o mesmo. Estava de pé, apenas sobre as minhas primeiras patas posteriores, movia-me de uma forma que nunca o fizera antes, o casco não parecia mais dar-me limitações, senti as asas com maior potência e a cabeça, analisava tudo com uma rapidez e precisão que me fez ter dores no cérebro.
— O que é isso?! — lembrei de ter questionado.
— Seja bem-vindo a primeira camada do Céu — lembrei, também, da voz que cobria todo o espaço, mas que não possuía corpo. — O planeta Terra está entrando em uma nova era, e, como estipulado pelo Criador, é chegada a hora de escolhermos a próxima espécie dominadora. Você, Shix, foi o eleito para representar os seus, as baratas. — Fez uma curta pausa. — Como já deve ter observado, este é seu novo corpo durante o tempo que estiver sob nossos cuidados. A imagem e semelhança do Criador. Durante o processo de escolha, o qual denominamos Maturação, todos os participantes recebem a autorização para usufruírem de suas versões mais evoluídas, as versões mais fiéis ao Criador. Entretanto, apenas a espécie vencedora será capaz de se enxergar eternamente dessa forma. Na primeira era, os dinossauros venceram a Maturação dos répteis, e se enxergavam a imagem e semelhança do Criador, apesar de não o serem realmente. Na segunda era, os humanos saíram vitoriosos da Maturação dos mamíferos, e desde então se enxergam a imagem e semelhança do Criador, apesar de também não o serem. É chegada a hora da terceira era. É chegada a hora da Maturação dos artrópodes.
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Hegemonia
Fantasy* VENCEDOR DAS OLIMPÍADAS DOS CONTOS 2020 * A vida na Terra segue seu rumo natural e é chegada a hora da evolução do planeta voltar a ser decidida: um grande torneio, onde um representante de cada espécie disputa a superioridade dos seus perante as...