Levantei-me depois de passar a noite em claro. Não era a primeira vez que isso acontecia e não seria a última, minha cabeça rodava a 220 volts e meu corpo não obedecia aos meus comandos, me arrastei até a cozinha e me sentei. -Podem avisar para o Sr. Jan que não estou me sentindo muito bem hoje? Encarei meu prato vazio. -Querida, tem certeza? Não quer comer algo? Tomar um banho e tentar ir um pouco mais tarde? –Minha mãe se aproximou e colocou algumas frutas no meu prato. -Não mãe – Ergui o olhar e assim que o fiz percebi o erro que havia cometido. -Aisha, o que é isso em sua testa? – Minha mãe disse preocupada – O que aconteceu? Não me diga que foi outra crise? Os seus remédios? Você tem tomado? -Mãe, está tudo bem, foi só um machucado, foi apenas um escorregão no gelo, eu estou bem! -Onde estão seus remédios Aisha? – A voz autoritária do meu pai ecoou pela cozinha. -Eles acabaram... – Disse pensando em mentir, mas preferi evitar e falar a verdade. -Por que não nos avisou? – Ele me encarou. -Podem por favor avisar que não vou hoje? – Segurei as lágrimas e me afastei.
Aquilo havia sido bem difícil, tinha a sensação de que carregava um enorme saco de chumbo nas costas e que minha alma havia sido devorada por algum monstro do submundo. Vesti meias, fechei as cortinas e me deitei. Meu pai apareceu um tempo depois, abriu a porta e colocou algo sobre a estante, ele não era bom com palavras então as poupava.
-Aqui está o dinheiro para o remédio – Ele disse antes de sair. -Perdi a receita, não quero mais essa falsa felicidade, prefiro sentir os meus dias ruins até o final. -Daremos um jeito – Ele se afastou e fechou a porta, não segurei minhas lagrimas.
Já havia ido em vários consultórios e visitado inúmeros especialistas, psiquiatras, psicólogos, psicanalistas... A minha lista era longa. E minha vida se tornava uma montanha russa de altos e baixos, quase me tornei dependente de vários remédios e no momento estava há 6 meses sem tomar nenhum, estava me desintoxicando e era um processo triste e doloroso, meus pais não sabiam da minha decisão, não até aquela manhã.
A casa estava silenciosa, me levantei e abri minha gaveta, busquei lá no fundo no meio de várias roupas emboladas uma caixa de cigarro, puxei um e caminhei para a varanda, sentei-me no pufe que havia lá e acendi o cigarro. Novamente, naquela tarde fria, com meu pijama fino e um cigarro barato, eu chorei.
Acabei voltando para o quarto para não morrer de frio, me deitei e acordei com o barulho do carro dos meus pais entrando na garagem, já era noite, eu não notei que havia dormido tanto. Minha mãe apareceu e abriu a porta, tinha uma bandeja com cereal, leite caramelizado e uma maçã.
-Não vi louça suja então provavelmente você não comeu. Coma nem que seja um pouco, tudo bem? -Tudo bem! – Menti. Não iria comer. -Bem, vou procurar um novo médico para você, deveria ter-nos avisado que parou com os remédios, seu pai e eu ficamos preocupados... não queremos que- Mãe, por favor, não precisamos falar disso, eu estou bem, eu não quero me entupir de remédio, não mais, estou cansada... -Tudo bem Aisha, eu entendo –Claramente ela não entendia, mas eu sentia que ela se esforçava para entender e sua compaixão me bastava – Então coma, vamos dar um jeito, tudo bem? Talvez possamos diminuir a dose, ou procurar por meios alternativos, não sei. -Mãe, tudo bem... não estou no estágio terminal de um câncer – A verdade era que eu apenas me sentia assim e que fazia meu corpo acreditar algumas vezes que estava assim – Vou ficar bem. –Forcei um sorriso amarelo e lhe dei um beijo na bochecha. -Até amanhã querida... lembre-se que sábado é seu dia de cuidar do jardim, não pode adiar, - E nem vacilar, as rosas precisam de você. – Completei a frase. Vou cuidar do jardim mãe, eu prometo.
Ela saiu do quarto deixando a luz acessa e a bandeja sobre a estante ao lado da minha cama. Virei o rosto e me encarei no espelho do armário observando a minha deplorável imagem. Me levantei para apagar a luz. Dei um gole no leite e voltei para a cama. Quando abri os olhos, já era sábado de manhã.
Senti uma luz repentina invadir o quarto. Cobri meu rosto com o cobertor afim de evitar a claridade.
-Levanta! Sua mãe disse algo sobre jardim, machucado na testa e uma possível crise – A voz reconfortante de Eric inundou meu quarto
-Ela é um pouco exagerada... – Tirei a cabeça do cobertor.
-Ela não mentiu sobre a testa – Ele se aproximou e analisou meu ferimento -É uma longa história... se quiser me ajudar com aquele bendito jardim, te conto o que aconteceu.-No mínimo vou querer 100 reais para te ajudar a mexer com minhocas e adubo! – Ele sorriu e me fez sorrir.Vesti uma bota de jardim por cima da calca de pijama e uma luva, desci para o jardim que ficava na parte de trás da casa, meu corpo gritava por minha cama e um pouco de sono, apesar de ter dormido por horas eu havia prometido a minha mãe e não queria preocupa-la. -Bem, essa cicatriz que vos fala apareceu por conta de um atropelamento – Disse enquanto cortava galhos secos das roseiras. -Ah! Puta merda não está falando sério? – Eric ergueu as sobrancelhas e me encarou. Contei para ele sobre o ocorrido, sobre o homem, sobre a senhora calada, sobre tudo. -E você não perguntou o nome do seu quase assassino? – Ele disse no final. -Bem, eu perguntei, mas se ele me respondeu eu devo ter apagado da memória. -Por isso disse que passou a tarde comigo? Bem, se eu for tão atraente quanto o tal atropelador misterioso, então tudo bem. – Ele sorriu fazendo poses imitando modelos sarados. -Você é muito mais! – Repliquei ironicamente.
A tarde se passou rapidamente, era incrível a capacidade que algumas pessoas tem de tratar de almas adoecidas, Eric era uma dessas pessoas, me fazia um bem muito grande, as vezes momentâneo, as vezes não, mas o importante era que quando me sentia bem a minha vontade de perseverar e de acreditar novamente num tratamento longe de medicamentos e milhares de consultas parecia mais real. As pessoas têm o dom da cura, mas também tem o dom da destruição, o problema é que na maioria das vezes seguíamos um instinto maléfico e desacreditamos na nossa capacidade de fazer o bem, o mal nos cerca e nos arrebate com uma força imensurável, achamo-nos tão incapazes de sentir algo distinto daquilo que quando nos é mostrado o bem, desconfiamos e não cremos, perdemos a chance de sermos felizes muitas vezes por falta de uma gotinha de esperança. Eu buscava incansavelmente por essa gota.
Era domingo de manhã. Assim que Eric se foi, retornei para meu quarto, não senti fome aquele dia e não acordei muito faminta também, mas depois de três dias minha mãe me forcaria a comer algo, então já me forcei a levantar e caminhei até a cozinha. -Tome um pouco de café! – A voz de meu pai me fez despertar. -Ah sim, claro... – Peguei uma xícara e coloquei um pouco de café. -Sua mãe te avisou? – Ele disse virando o jornal (Domingo ele trocava o tablete pelo velho jornal de papel). -Não... o que? – Assoprei o café e ergui meus olhos para ele. -Ela conseguiu um novo médico para você. – Ele me olhou por uns segundos e voltou para seu jornal.
Eu sabia naquele momento que mesmo que eu tentasse explicar para eles que eu estava cansada dos médicos, cansada de explicar algo inexplicável, cansada de tomar tanta atenção e tanto tempo e poucas vezes melhorar. Queria poder dizer que não achava que eles poderiam me tratar, que talvez eu já tivesse perdida no meio de tudo o que me tornei nesses anos, queria poder dizer o que sentia, mas como eu poderia materializar algo impalpável? Como se explica para um cego a cor azul? Suspirei e tomei um gole de café.
-Que dia? -Amanhã pela tarde, avisamos o Sr. Jan. – Seu semblante calmo indicava que estava satisfeito de eu ter concordado. -Tudo bem, vou terminar de assistir alguma série e provavelmente dormir um pouco. Caso precise de mim estarei lá em cima –Subi com a xicara e fechei a porta. O domingo me pareceu demorar 3 dias para passar.
Caminhei para o carro junto com minha mãe, eu havia me esforçado ao máximo para parecer melhor. Vesti uma calça jeans e um moletom, prendi meus cabelos num coque (O que matava minha mãe de raiva já que ela gostava das ondulações que eu destruía com um coque bagunçado) coloquei um tênis e um par de luvas. No caminho coloquei no fone uma música alta e me deitei no banco fechando os olhos, acordei com o barulho do carro desligando. Caminhamos para uma sala de espera, após uns 5 minutos a porta se abriu e eu pude ouvir lá de dentro da sala
-Aisha! Aquela voz não me parecia estranha. Me levantei forçando um sorriso para minha mãe e caminhei até a sala. -Você? -indaguei surpresa encarando aqueles olhos castanhos que pensei nunca mais ver.
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The doctor
RomanceNathan, esse era o nome que ele havia me dito, mas depois de tentas mentiras e tantas descobertas era difícil acreditar em mais alguma coisa. Um novo doutor, uma nova consulta, era para ter sido apenas mais uma tentativa de enfrentar sua doença, ma...