Capítulo 2

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Capítulo 2

Alguns dias depois do dia fatídico onde vi que não temos poder sobre nada, onde a certeza da impotência da humanidade sobre a morte ficou clara, estou um pouco mais conformada com a situação. Apenas um pouco, porque na verdade ainda existe um forte sentimento de revolta, impotência e uma esperança de que de repente minha irmãzinha abra seus olhos cor de mel que tanto achava bonito e eu possa enxergar o brilho da juventude cheia de sonhos mais uma vez. Sei que é loucura, que os médicos garantem que não irá acontecer, mas é instintivo. É do ser humano esperar um milagre mesmo quando tudo está perdido. Mesmo eu sendo tão racional meu subconsciente espera uma intervenção divina. Eu imploro por isso toda noite quando me deito para tentar dormir, essa é a verdade.

Mas sei que não irá acontecer.

- Ah, minha irmã - seguro firme em sua mão fria e desfalecida. - Eu sei que não pode me ouvir, mas ainda assim preciso dizer muitas coisas para você. - um nó costumeiro se aperta em minha garganta indicando que em breve o pranto se romperá dos meus olhos. - Sempre estarei aqui para você. E agora para sua bebê. Não sei por que, nem como, mas de alguma maneira penso que você está me escutando, estando ou não ainda neste corpo. Talvez seja o desespero típico das pessoas que perdem quem ama, elas querem de qualquer maneira se apegar a alguma chance de que ainda estejam ligadas de alguma forma. - olho para sua barriga. - na verdade ainda estamos. Nem sei como gostaria que chamasse sua filha. Não tivemos tempo.

Uma lágrima cai sobre minha face.

- Nem sabia que teria uma filha. Como pode me esconder isso Katharine? Está certo que agora não adianta lamentar, mas fiquei muito magoada com você. Pensei que éramos amigas. Eu só tenho você.

Sempre fomos apenas nós duas, desde que nossos pais morreram em um acidente de carro há dez anos. Talvez por isso doa tanto. Mais uma vez me vejo em uma situação de luto, dor causada por um acidente de carro. Meus olhos saem de seu rosto cheio de hematomas e descem para sua barriga já bem grande mais uma vez. Deixo sua mão ao lado do seu corpo e coloco as minhas em sua barriga. É um milagre que esse bebê tenha sobrevivido a um acidente tão violento, com tantas vítimas.

Katy me ligou na mesma manhã do acidente dizendo que viria para Salvador, um dos motivos do meu atraso em buscá-la, tinha uma reunião muito importante. Ela disse apenas que tinha uma surpresa para mim que eu iria pirar, mas depois iria adorar. Como está no último semestre da faculdade pensei que ela tinha conseguido um emprego bom na sua área. Ou qualquer coisa que não envolvesse maternidade.

- Oi bebê, eu sou Helena, sua tia. Vinte e sete semanas de gestação, e eu nem sabia de sua existência. É uma surpresa e tanto. - passo a mão levemente, em seguida deixo-as descansando sobre ela. - sei que você pode me ouvir, isso me anima sabia? Titia vai te amar muito, te dar amor e carinho. - mais lágrimas brotam em meus olhos. Engulo em seco, minha voz embarga e sai tremida pela emoção. Quando essa dor vai diminuir? - estou doida para ver o seu rostinho, saber se é tão bonita quanto sua mãe. Assim que você estiver pronta vai vir direto para meu colo. Prometo que farei de tudo para que seja a criança mais feliz do mundo. Vou sempre falar histórias sobre sua mãe, contar como ela poderia ter sido maravilhosa para você. Prometo que vai ser feliz bebê.

O médico disse que com 13 semanas de gestação, o aparelho auditivo do bebê já está apto a perceber sons. Então, ela não apenas ouve a minha voz como capta outros ruídos externos. Disse que eu precisava conversar com ela para que reconhecesse minha voz quando viesse ao mundo. Precisamos estreitar um laço desde o ventre para que ela se sinta segura e amada. Começo a cantar uma música para ela bem próximo a barriga da Katy. Me causa um certo estranhamento no princípio, me sinto ridícula. Olho ao redor temendo que alguém ouça. Por sorte katy está em um quarto isolado por causa do seu estado. O valor a ser pago por isso é alto, mas não tive dúvidas em pagar. Minha voz sai embargada enquanto canto.

Tudo por amor (degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora