IV

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Clara caminhou lentamente pela rua se questionando sobre o que tinha visto noite passada. Ela tentou fingir calma o suficiente para não preocupar o avô ou a tia pela manhã, mas a verdade é que ainda não tinha processado totalmente o ocorrido. Ulisses lhe pediu para que conversasse com Susana. Clara sabia que isso lhe faria bem, no entanto, algo dentro dela a dizia que a interpretação da esotérica poderia não ser muito positiva. Ela tinha a ciência de que suas visões eram um tanto proféticas, mas a da noite passada foi como um pesadelo. Sua espinha gelava de pensar no que aquilo poderia significar.

Atravessou a praça e entrou na viela que cortava a rua do bar. Para evitar desconforto, ela desamarrou os cadarços e tirou o par de botas que lhe calçavam os pés. Depois de tirar as meias, andou mais um pouco até sentir sob os pés a areia fofa. Estava próxima da beira da cidade.

Mais uma curta caminhada e ela se encontrou de frente ao aconchegante e bonito casebre de barro e madeira pintado de um rosa desbotado em que Susana morava, vis-à-vis à praia que demarcava o limite da cidade. Clara logo pôde avistar Elisa varrendo a frente da casa e acenou, sendo recebida com um sorriso. Se aproximando, ela respirou fundo e subiu os degraus, sentindo o sol se afastar ao entrar. Clara nunca se acostumou com a casa de Susana, que aparentava ser pequena por fora, mas era bastante extensa. Atravessou as cortinas da pequena ante sala com um frio na barriga e chegou à grande e aconchegante sala, notando um incenso aceso.

— Clara! — Susana se sobressaltou, alegre, ao vê-la.

— Tudo bem, Susana? — estava desconfortável com a situação, mas gostava muito de Susana. Era muito próxima dela desde que era criança, quando seu avô em pessoa lhe levava para conversar com a esotérica.

— Melhor agora em ver você! — disse, dando-lhe um abraço apertado e carinhoso. — Está de folga da livraria?

— Na verdade aproveitei o intervalo para fazer uma visita.

— Faz algum tempo que você não aparece por aqui... As visões de novo?

Clara assentiu com a cabeça, nervosa.

— Elisa, você...

— Vou regar as plantas! — ela disse prontamente, recebendo um sorriso de aprovação da patroa, e saiu em seguida.

— Vou te preparar um chá de camomila, meu bem. Senta.

Susana foi até a grande estante e tateou com os dedos até encontrar o pote com a camomila. Encheu um bule na pia com água e o levou ao fogo, trocando algumas palavras com Clara, perguntando sobre Ulisses e Teresa. Depois de servir o chá na pitoresca xícara de porcelana azul, Susana sentou-se defronte para a moça e lançando-lhe um sorriso carinhoso, indagou:

— O que foi que você viu? — uma seriedade pesada surgiu em sua voz.

— Foi estranho... foi diferente. Eu senti uma coisa perto de mim. Eu vi uma sombra estranha... — Clara tentava detalhar, mas tudo seguia extremamente turvo.

— Pelo que estou entendendo, você não sabe ao certo o que era?

— Não consegui identificar.

Susana então levantou e buscou um baralho na gaveta da estante, engoliu em seco, acendeu um novo incenso e forrou a mesa com uma toalha.

— Você acha mesmo necessário? — Clara perguntou, com medo.

— Talvez a sua sorte revele algo escondido.

Ela embaralhou as cartas e dispôs dezoito sobre a mesa, formando três fileiras horizontais iguais, e juntando mais duas à primeira fileira. Logo se dispôs a virar as cartas e explicar seus significados a Clara. Primeiro, um Cinco de Paus, o desfavorável cinco: desejos insatisfeitos, luta violenta, conflitos, barreiras...

Virou a segunda carta.

— Seis de espadas... um mensageiro, um enviado... Pode ser também um caminho ou alguma rota... — Susana olhou para aquele jogo curiosa. Coçou a mão e virou a carta seguinte... não era possível.

Ficou estática, encarando aquela carta.

— O que foi, Susana? Me diz! — os olhos de Clara brilhavam, marejados. Estava assustada.

— Dez de espadas... — a voz de Susana falhou.

— O que é que significa o dez de espadas?

— Dor... angústia... aflição e...

— E?

— Morte.

Clara encarou Susana aterrorizada.

— Estou atrasada... eu tenho que ir. — levantou, tentando conter o choro e saiu depressa antes que Susana pudesse dizer alguma coisa.

A esotérica nunca tinha visto algo como aquilo antes... Susana passou a virar todas as cartas em sequência, lendo-as mentalmente. Suas mãos tremeram. Amor e morte andariam juntos na vida da menina. O jogo que virara para Clara era idêntico ao que revelara a trágica sorte de Aline mais cedo.

MISTÉRIOS DA MEIA NOITEOnde histórias criam vida. Descubra agora