03-Emoções

6.1K 872 308
                                    

Bea ligou a luz da sua sala e colocou a bolsa no lugar devido. Ela bebericou um pouco mais do café que segurava nas mãos e se sentou à frente do computador para continuar seu trabalho que há dois dias se perdurava, parecendo não ter fim. O problema maior não era desenvolver os relatórios, mas não se deixar afetar pelas histórias. Sentia o coração ser comprimido a cada relato. Antes de começar aquele processo, tomou um pouco mais do café e fez uma curta oração.

— Me ajuda a dar conta deste trabalho, Jesus. — Tinha o desejo sincero das coisas darem certo.

Após uns minutos de reflexão, ligou a tela do computador e esperou carregar até entrar dentro do sistema devido. Preparou seus papéis para escrever os pontos principais. Era claro que poderia usar o word, mas escrever carregava a sensação de a deixar mais perto e refletir com maior sinceridade sobre os processos, depois passava para o programa.

D

epois de ter feito todos os preparativos, começou a trabalhar. Ela não se concentraria sem as coisas no devido lugar. Abriu um dos processos, dedicando real atenção aos assuntos abordados, e era terrível o caso. De todos os casos que tinha lido até ali, durante os primeiros dias de trabalho sobre abandono, abusos verbais, físicos que a faziam se perguntar sobre como aquelas vítimas infantis poderiam ter um bom futuro com tantos sofrimentos já experimentados. Aquele, em específico, lhe fazia revirar o estômago.

Por uns instantes, voltou ao passado e à memória feliz de quando o pai chegava em casa à noite do trabalho, trazendo quase sempre uma balinha, flor ou qualquer coisa que refletia a saudade que obtinha de sua única filha. Ela fechou os olhos e as lágrimas ameaçaram cair. Bea acreditava que todas as crianças deveriam ter a chance de ter um pai tão amoroso e protetor como o seu foi.

Passaram algumas horas, e a auxiliar ainda tinha sua atenção focada nas páginas digitais e, em certo momento, entre os parágrafos da história que lia, não conseguiu reter as lágrimas, que fluíram. Os relatos descritos eram sobre uma garota abandonada pela família, adotada por outra, que a torturou com as piores coisas possíveis, enfrentou um abuso sexual, mas, enfim, foi resgatada e retornou para o abrigo.

Bea tentava ponderar sobre como a mente da criança sobreviveria depois de tamanhas aflições. Por um momento, ela deu as costas à tela do computador e respirou fundo. Tentava procurar controlar as emoções, mas os pensamentos eram ágeis em questionar a Deus sobre as motivações de uma criança passar por tamanhas dificuldades.

— Senhor — começou a conversar com Deus, sentindo a compaixão aflorar na sua alma —, como pode ver tudo isso e permitir? Meu pai! Quantos traumas essa criança carregará?

Ela continuava a indagar e o choro parecia se intensificar conforme orava. Mesmo sendo difícil, resolveu voltar a ler e, com assiduidade, analisava cada vírgula do relato. Dessa vez, o pranto tomou conta ao chegar ao que parecia o clímax de uma história de terror. Nem sua autora de romance preferida conseguiria expor com tanta sensibilidade uma situação dramática quanto aquele relatório com palavras diretas e cruas.

O documento descrevia uma situação nauseante que a fez considerar se realmente suportaria as demandas do serviço. Por Deus! Como existiam pessoas que se acostumavam com esse tipo de trabalho, ou pudessem chegar um dia e achar comum tamanha monstruosidade? A adaptação era maior do que imaginava suportar.

— Senhorita Mendes, eu... — Pedro entrou na sala, chamando-a, mas não obteve resposta.

Sem entender o motivo de tanta desatenção, ele falou seu nome mais uma vez, dessa vez, um pouco mais alto. Só então ela ergueu a cabeça e os seus olhos vermelhos denunciaram as emoções descontroladas. Bea sentiu o impacto daqueles olhos azuis, frios como o gelo, do juiz Bernardi sobre si. Ele estava parado na soleira da porta, com a típica postura séria e os lábios comprimidos. Não saberia descrever com exatidão qual sentimento predominava nele, se era o desdém ou o profundo aborrecimento. Nada conseguiu dizer, apenas limpou as lágrimas que escorriam pelas bochechas vermelhas.

— Por que está chorando, senhorita? — perguntou, frente àqueles olhos vermelhos e inchados.

— Desculpe-me. — Beatrice passou a mão no rosto outra vez e desligou a tela do monitor como se tivesse sido pega lendo algo proibido.

Ele, que estava parado na porta, entrou mais na sala, aproximando-se dela. Mas, antes de declarar alguma sentença, observou a exímia organização na mesa de trabalho da jovem.

— E então? — Ele arqueou a sobrancelha e a olhou.

Ao notar o rosto compenetrado do chefe, Bea retorceu as mãos e balançou a cabeça em negativa. Ela tinha certeza de que pagava todos os seus pecados por passar tanta vergonha na frente do juiz. Mesmo com medo do que ele acharia, decidiu contar a verdade sobre o porquê de suas lágrimas.

— A história descrita aqui nesses processos. — Apontou para o monitor. — É triste. Muito triste! — enfatizou.

— É muito emotiva, senhorita Mendes? — Pedro reclinou o corpo para frente, olhando-a com tamanha atenção que parecia enxergar até suas entranhas.

Ela piscou algumas vezes querendo compreender melhor a pergunta e respondeu:

— Não, senhor. — Abaixou a cabeça, sentindo a vergonha por estar mais uma vez de modo inadequado na frente dele. — Mas acredito que qualquer ser humano com coração se compadeceria dessa história. — Fungou. — Peço desculpas por estar neste estado. — Bea voltou a limpar os olhos marejados.
Pedro enrijeceu o maxilar e respirou fundo.

— Senhorita Mendes, pare com isso! — o juiz ordenou, fazendo Bea arregalar os olhos.

— Mas eu...

— O que fará por eles com o seu choro? Por acaso poderá mudar o passado ou traçar novas rotas para o futuro? Diminuiria a dor deles em algum centímetro? — Ele parecia implacável com aquelas indagações, sem dar chance de resposta para a nova contratada. — Essas crianças não precisam de um coração que se comove com lágrimas, mas, sim, de um que resolva o problema deles e garanta que não passarão novamente pelo mesmo sofrimento.

Beatrice se sentiu acanhada e despedaçada pela repreensão que parecia ser de um pai para a filha. Ela não poderia argumentar, ora por se sentir inibida diante do autoritarismo que emanava do homem, ora porque não gostaria de criar mais uma animosidade na sua primeira semana de trabalho. Mas o sentimento de frustração e angústia se instalaram no coração. Ele não poderia ser um pouco mais cordial ou misericordioso para entender que nem todas as pessoas processam as circunstâncias de modo igual? Parecia que não.

— Controle suas emoções! — ordenou, alinhando o terno azul escuro.

Com timidez, Beatrice assentiu e visualizou o piso branco abaixo de sua mesa. Nunca se sentiu tão pequena e errada pelo seu modo de ser.

— O senhor não me verá mais nesse estado — garantiu e suspirou.

— É o que espero. — Ele a olhou sem emoção e declarou mais: — Informo que às três em ponto terá uma audiência.
Ela ergueu a cabeça e disse com confiança:

— Está bem, doutor Bernardi. Estarei pronta.

Pedro semicerrou os olhos para a jovem e balançou a cabeça e fez menção de sair, porém antes de sumir da sala, verificou as horas no relógio de pulso e indagou:

— Não está na hora do seu almoço?

— Ah, sim! — Ela se atentou para o horário no próprio relógio. — Mas acho que vou ficar por aqui — Bea ressoou um pequeno murmúrio. — O senhor deseja mais alguma coisa?

Ele balançou a cabeça e proferiu:

— Que almoce, pois não desejo uma funcionária doente. — Virou-se de costas e saiu da sala sem esperar resposta.
Beatrice, ao ver sua saída tão repentina — assim como a entrada —, franziu o cenho.

— Oh, Pai, dai-me graça! — Ergueu as mãos ao céu, clamando ao divino. — Senão, irei assassiná-lo!

Um Perfeito Encanto (Degustação)Onde histórias criam vida. Descubra agora