"Ainda me lembro de quando encontrei o jovem garoto que era diferente de todos os outros habitantes de nosso enregelado vilarejo, vagando pelas ruas com seu pai humano e sua mãe anã.
Era algo inusitado. Nunca havíamos visto um mestiço, nem imaginávamos a sua forma futura ou os grandes feitos que estavam reservados a ele.
Seus cabelos pretos e bagunçados lembravam os de seu pai, esguio e alto, que andava cambaleando para poder tocar as mãos de sua mãe. Ela, por sua vez, conquistaria o coração de qualquer outro habitante de Qöd; uma linda anã, de cabelos cacheados e loiros, com belíssimas joias azuis nos olhos. A estatura do menino ficava entre os dois, maior que a mãe e menor que o pai. Não dava pra saber se seria mais humano ou mais anão. Era engraçado ver e tentar imaginar como ele seria.
Logo soube que seus talentos também seriam outros. Quando ele parou, contemplando os acordes que tocava, seu sorriso me fez perceber a sua vocação. Pesquei aí a chance de ensinar o que tinha de melhor em mim, a magia pela música. E não é que o garoto aprendeu bem!
Primeiro foram os acordes, difíceis de serem decorados; depois os feitiços e encantamentos. Lógico que a disciplina e a ordem não eram seus aliados, mas nada que uma varinha de marmelo não ajudasse a corrigir.
As noites na taverna em que ele se apresentava já depois de crescido eram as mais animadas, regadas a boa música, hidromel e muitas risadas; embora vez ou outra ocorresse um desentendimento, o que era muito normal entre as carrancas dos "anões das neves".
Ele adorava se divertir e fazer os outros se divertirem. Era o que o aquecia essas terras frias.
A música, as apresentações nas ruas da Cidade do Porto encantavam as crianças e alguns adulto, em suas miserabilidades, pois era o momento que tinham para esquecer do resto do mundo. Quando ele andava durante o dia no vilarejo não tinha sossego, os pequeninos gritavam seu nome pedindo para que cantasse ou fizesse algum truque. A apresentação os fazia transportar para longe do frio e aquecia os corações de todos que o ouvissem.
Mas como todo jovem crescido, logo as bebidas e os romances apareceram para importunar. Ah, como era engraçado vê-lo despistando-se dos pais das senhoritas. Ora, ora, ora, um jovem rapaz precisa começar a se entrelaçar com as raparigas antes que acabe velho e sozinho, como estou agora...
Parecia que o mundo precisava ouvir sua canção, conhecer a sua história e eis-me aqui, pronto para contá-la.
Não sei quanto tempo precisei esperar para superar todas as ocorrências que se sucederam desde a tomada das minas. Quando fecho os olhos ainda ouço os gritos e vejo a luz daquele feitiço maligno e repugnante que chegou até o norte. Como gostaria que o tempo voltasse para antes disso, quando nossas preocupações eram apenas decorrentes de suas peripécias em nossa vila.
Meu melhor discípulo, meu maior amigo, não sei quantas vezes me trouxe a alegria e a vida de volta ao meu ser. Que o mestre trovador Rampsky me ajude a contar esses tristes fatos da história de nosso povo.
A canção que não se apaga da minha mente e nem do meu coração."
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O Mestiço de Qöd
FantasiaRolkin é um mestiço que vive no extremo norte do planeta, com o povoado anão da família de sua mãe. Seu pai, um humano, de quem herdou a aparência e o talento com a música, já não vive mais. Sentindo-se que não faz parte desse povo, tenta a todo cus...