Foi um tombo?

23 6 175
                                    


Não podia sentir nenhum milímetro do meu corpo. Ele estava totalmente dormente e minha mente não encontrava nenhuma evidência de realidade.

Ainda podia absorver o calor daquele espaço mágico onde penetrei, mas não sabia ao certo se se tratava de um sonho ou delírio. Ou mesmo se era real aquilo que vivi.

Lembrava-me de ter avistado Helena ainda pequena sentada próxima à janela carregada de coisas dentro dela. Pequenas, grandes, ela sempre as carregava de alguma forma.

Às vezes ela tentava se livrar quando o céu carregava estrelas. Outras, as embrulhava embaixo do cobertor e custava a pegar no sono. Os olhos pesavam junto aos sonhos de criança. Helena não me ouviu e não me viu. Queria tanto ter falado com ela!

Se eu tivesse realmente algum poder sobrenatural certamente este seria o melhor momento para ele se manifestar.

Eu me esforçava para entender toda aquela situação e sensação quando, de repente, me vi sentada em uma pedra transparente presa em fios que se desprendiam por todos os lados, formando uma grande teia.

Ao que tudo indicava eu havia me tornado uma presa. Aos poucos, pude ver a imagem de um inseto de um olho só entre a face enrijecida pelo néctar dos pântanos. No mesmo instante fui tomada de pavor e tentei gritar, mas minha voz foi embargada. Era um grito preso.

A imagem do palhaço Pipoca havia se dissipado e agora tomavam o semblante de um homem turvo. Não é que eu pudesse ver claramente com os olhos -inclusive fechados naquele momento.

Eu o podia sentir de alguma forma ao meu lado.

A respiração ofegante afagava minha face e mantinha-me viva.

No meio disso tudo dois caminhos surgiram em bifurcação na minha frente. Não saberia escolher qual seguir.

De um lado; apenas o flash luminoso de uma claridade ótica extremamente densa. Do outro; um grande abismo com pássaros azulados circundando a cavidade côncava mais alta.

Eu sabia que tinha pés, mas havia uma inércia que me prendia àquele espaço e eles não me eram nada úteis.

O predador se movia feito cobra em minha direção e sem saber o que fazer para sair daquela situação na qual me lancei ou me jogaram fechei com forças os olhos e pude sentir o suor das mãos do homem tocando suavemente meu rosto.

Instantaneamente, aquelas gotas salgadas e densas viraram um canal que fluía para dentro do precipício e sem que pudesse escolher, simplesmente fui jogada na correnteza e descia caindo, caindo quando vi meu corpo estendido em um corredor não sabendo quando ou quanto tempo estava ali.

Os pássaros atravessaram junto comigo naquela descida abrupta e sumiram assim que abri os olhos.

Lentamente e ainda meio grogue com os chacoalhões da viagem pelo canal entre seres grudentos querendo tragar meu corpo pude enfim, tentar alcançar algum estado de lucidez.

Consegui lembrar das tintas que deixei em cima da mesa esperando para ganharem formas e parecia que elas tinham ganhado vida própria.

Ainda estava tudo meio confuso, mas pude enxergar com clareza a imagem daquele que me salvou das teias e do maldito predador. Ele tinha um sorriso doce mas seus olhos continham uma incerteza que naquele momento poderia ser apenas preocupação. Mas não era porque pude ver seu coração do tamanho de um grão de arroz.

As roupas de palhaço disfarçavam uma tristeza de saudade. Não era de alguém. Talvez dele.

Próximo ao queixo havia uma cicatriz profunda.

Ele estava quase debruçado sobre mim quando consegui esboçar algumas palavras.

- O que houve? - perguntei com uma voz ainda meio rouca.

- Você caiu no meio do corredor e machucou a cabeça. Estávamos tentando chamar uma ambulância para te levar a um hospital...

- Talvez seja uma boa ideia a ambulância porque não estou raciocinando direito.

- Ela já deve estar chegando... Tem mais de meia hora que comunicamos o ocorrido.

Precisava tentar entender tudo aquilo  pois ainda era um estado muito real. A queda naquele corredor não fazia o menor sentido e precisava ser investigada.

O PICADEIRO E UM CORAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora