Catatônica

9 0 0
                                    

As flores lá fora balançavam agitadas captando os movimentos dos pássaros. Os vidros fechados tentavam absorver a luz do sol que teimava em se esconder atrás das nuvens. A aparente calmaria daquele lugar frio e branco vinha do barulho do chafariz que brincava com as águas cristalinas em  frente aos blocos daquele recinto. Todos ali recebiam cuidados. Era um hospital. Alguns mais, outros menos. Helena estava lá. Aparentemente.

Desde o dia em que chegara não conseguira emitir nenhum tipo de som. Apesar de ter balbuciado algumas palavras no corredor do circo, durante o trajeto na ambulância verteu-se em estado catatônico. 

Já haviam se passado sete dias do episódio e nada dela voltar ao normal. 

Os colegas da redação apareceram algumas vezes. Ninguém soube passar informações sobre algum familiar  que pudesse acompanhá-la.  Era muito discreta quanto ao que se passava em sua vida longe do trabalho. Seu distanciamento era visto por alguns com certa indigestão, mas pela dedicação e ideias sempre inovadoras mantinha-se no cargo de redatora.

Por ironia do destino um palhaço, agora de cabelos castanhos, seria novamente o único amigo que Helena poderia contar. Lá estava ele ao seu lado na espera de qualquer indício de sua volta. Onde ela estava? Se perguntava enquanto fitava seus olhos.

Eles agora concentravam-se fixos no ponto de luz que ficava em frente a maca do quarto enquanto Helena parecia buscar a razão para voltar.

"Eu estava ali, mas de certa forma não estava porque não conseguia comunicar-me com ninguém. E também não fazia tanta força pois, de todo, aquela sensação me garantia uma paz só experimentada há mais de vinte anos atrás quando o palhaço Pipoca apareceu pela primeira vez. Havia me esquecido do meu amigo da infância, como também havia esquecido tudo aquilo que uma criança não poderia precisar passar. Desde o dia  em que desisti de ser adotada, ou me livrei daquela esperança, fiz questão de esquecer o meu passado. Matei meu pai dentro de mim. E com sete anos moldei a minha personalidade. Haveria de ser forte. Sem me dar conta da minha rigidez eu fui simplesmente seguindo. Nenhuma família apareceu para me levar para casa. Até hoje ainda me pergunto se o Pipoca era real, mas resolvi seguir o conselho de me esconder dentro do coração vermelho. Acho que de tanto brincar de esconde esconde eu me fechei. Aproveitei para me dedicar ao máximo aos estudos e logrei meu quase lugar ao sol como publicitária e jornalista, mas andava meio estranha nos últimos tempos. Agora ali, inerte, eu sentia uma paz tão grande que voltar não era uma de minhas opções. Não naquele momento. Aquele palhaço do circo estava sempre ali ao meu lado. Pensava até em arranjar um jeito de voltar só para lhe mandar embora, coitado, e rapidamente voltar ao vazio onde eu me encontrava."

O palhaço permanecia ali sentado ao lado dela naquela cadeira desconfortável de hospital. Só saia para fazer as suas apresentações no circo, mas rapidamente voltava cheio de esperanças. Às vezes, ele conversava com ela. Outras, preferia somente imitá-la e passava o dia olhando fixamente para o ponto de luz.

Nenhum exame detectou algo que pudesse estar ocasionando aquele quadro de inércia. Acreditavam se tratar de algum tipo de doença mental e passaram a tratar com antipsicóticos. O palhaço acreditava se tratar de uma desistência, já que nada poderia justificar aquela ausência. E com ele se perguntava se desistir assim seria mais fácil. Helena esperta! Mas ao mesmo tempo uma angústia tomava conta de seu coração sem entender porque ela havia despertado algo estranho nele. 

Enquanto olhava o ponto de luz sentiu uma vontade repentina de lhe comprar flores, mas como não sabia se ela gostava, temeu parecer um idiota. Talvez seria porque Helena preferia flores no jardim. Ainda bem que não o fez. Mas de que Helena gostava?

Precisava fazer algo para despertar naquela moça de cabelos encaracolados um sentimento de esperança. Lembrou-se que ela gostava de pipoca porque já havia notado a sua presença no circo muito antes daquele desmaio. Ela estava com um balde gigante nas mãos.  E não era este fato que lhe chamara a atenção. Além de estar sozinha, sentiu que ela era sozinha pois notou seus olhos distantes.

"Eu bem que poderia dar uma volta lá fora sobrevoando a cidade como um pássaro. Acho que poderia criar asas. Estou tomada de uma força estranha que me mantém inerte, mas ao mesmo tempo sinto que sou capaz de voar. Com um piscar de olhos eu poderia me desprender desse corpo agora e não sei porque sinto essas coisas, mas parece que... Eu consigo!!! Eu consigo!!! Estou voando olhem só! Eeeeei! Alguém está me vendo?"

Por algum momento o palhaço pode ver Helena fechar levemente os olhos e balançar as pernas permanecendo assim por mais de dez minutos. Pensou em chamar alguém para que pudesse fazer alguns exames, mas também ficou em estado de choque. 

Ela voltou ao estado de antes e o palhaço encheu-se de alegria. Ela parecia estar voltando! Ou teria tido um tipo de convulsão? Decidiu comunicar o acontecido ao plantonista já no fim da noite porque tudo permaneceu igual. Sete dias assim. Enquanto providenciavam os exames, aproveitou para tentar achar pipoca para Helena. A pipoca salvaria Helena.



Você leu todos os capítulos publicados.

⏰ Última atualização: May 31, 2019 ⏰

Adicione esta história à sua Biblioteca e seja notificado quando novos capítulos chegarem!

O PICADEIRO E UM CORAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora