Respeitável público! Não, não foi bem assim que começou. Nem como terminou. Aliás, ainda estou tentando entender o meio disso tudo.
O dia estava incrivelmente perfeito! Havia conseguido terminar o artigo a tempo, se bem que "a tempo" é algo relativo. Tempo de quê afinal? Há tempos venho pensado sobre isso e a cada pensamento uma lembrança perdida é arrancada da minha cartola.
Falando em arrancar também arranquei um elogio do chefe da redação e não consigo pensar no lado bom disso, não mesmo, mas mudando de assunto: o dia estava perfeito!
Até o trânsito parecia fluir de um jeito diferente. Precipitei-me como de costume para chegar ao circo. De longe pude ver o agito por detrás das tendas coloridas. Ainda estavam preparando o espetáculo.
O cheiro de pipoca invadia todo aquele ambiente lúdico abrindo as portas de algumas memórias perdidas entre tantas outras em minha mente.
Esforcei-me por lembrar, mas as filas começaram a se formar rapidamente. Ainda consegui sentar na primeira fileira bem em frente ao picadeiro.
Esperava ansiosa pelo espetáculo com um balde de pipocas gigante nas mãos como algo incrivelmente extraordinário!
Mas foi só um circo. Palhaços, malabaristas, equilibristas, cores, luzes, refletores. Apenas um circo.
Nenhum coração gigante pendurado. Nenhum palhaço de cabelos laranja arrancando-me o riso. Nenhum sonho resgatado, pintado, desenhado. As tintas ainda estavam sob à mesa tão sozinhas quanto as deixei.
Ao final, sem qualquer tipo de esperança dentro de mim, pude sentir um vento me dispersar em direção ao camarim.
Hesitei por não ceder aos comandos do vento, mas ele me empurrou tão forte que caí lá dentro de joelhos.
Ainda me restava um pouco de lucidez e custei a acreditar no que os meus olhos enxergavam.
Era tudo tão mágico! Unicórnios coloridos percorriam as rampas relvas que desembocavam em piscinas de cristais formando corações de águas luminosas. Nadavam ali peixes multicoloridos refletindo as luzes do céu multiestrelado sobre suas escamas.
Fechei e abri meus olhos mil vezes para me certificar que era real. A cena permanecia intocada.
Em êxtase corri para o palco vermelho gigante que ficava no centro daquele cenário mágico! Meus sonhos ganharam vida além das tintas sob a tela. Não podia ser real! E antes que tudo pudesse desaparecer também com o vento que me trouxe ali, pus-me a dançar girando entre as fitas cintilantes que formavam uma grande cortina colorida. Nelas me envolvia enquanto purpurinas de estrelas caiam sobre mim.
Cambaleante de tanto girar caí de cansaço sob o tapete felpudo que cobria o palco e a imagem de um palhaço de cabelos laranja foi se formando através dos estilhaços de luzes que se espalhavam dentro do espelho dourado em minha frente.
Caleidoscópio de imagens refletidas por todos os lados daquele espaço surreal e o palhaço Pipoca não foi uma imaginação de criança? Voltei no tempo dentro de um coração que se desprendeu do céu. Ali encontrei Helena, criança pequena, sentada no canto da sala olhando pela janela.
Chamei por ela, mas ela não me ouviu. Tentei mais uma vez mais alto com o coração saltando pela boca:
- Helenaaaaa!!!
Mas Helena continuou fitando o tempo que percorria a janela de sua alma inocente. Continuou inerte, sonhadora, encantada. Ali dentro do corpo de criança de sete anos, continuou vigiando a grama que dançava lá fora. Ali ficou e não me ouviu. Também não foi ouvida.
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O PICADEIRO E UM CORAÇÃO
FantasíaO Picadeiro e um Coração com um enredo 'aparentemente' infantil é um livro para emocionar adultos cheio de metáforas sobre a vida, as perdas, o abandono, o desamparo a que todos nós estamos sujeitos seja por amor ou desamor. É um livro lúdico com...