Um dia de cada vez

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Era uma noite inundada de estrelas lá no céu distante da Terra, mas por mais que brilhassem em resplendor, nem elas estavam conseguindo alegrar o coraçãozinho de Helena naquele dia.

Ela já havia amanhecido um tanto calada, como não de costume. Os brinquedos no pátio por mais que implorassem - vem Helena!, pareciam ter perdido a cor para ela naquela manhã ensolarada com algumas nuvens se aproximando ao longe.

Nem passou pela sua cabecinha dependurar embaixo do escorregador e virar aquela cambalhota diária. Deixou o escorregador para lá. E todos os outros brinquedos pareciam se doer pela falta dela porque também permaneceram estáticos, intocados. As crianças arrumaram outros tipos de distrações.

O motivo da tristeza estampada em seu rostinho se devia a essa mania feia de ouvir atrás das portas. Deus a castigou: escutou palavras secas demais para a sua tão pouca idade. Certo é que ninguém abaixo do céu será poupado. Ela muito menos. Muito menos ela!

Precisamos aprender desde pequenos a ir criando uma capa de proteção gigante que nos cerque de determinadas maldades aparentemente inofensivas. Alguns não conseguem desenvolver essa proteção. Outros fazem dela uma couraça tão forte que se tornam impenetráveis. É preciso saber o ponto certo. Proteção demais ou proteção de menos nunca dá certo. Um pouco de açúcar, um pouco de sal. Está pronta a capa! Nunca está...

Na escola a primeira lição que aprendemos com os nossos professores é: se quer falar ou perguntar alguma coisa é preciso que se levante primeiramente a mão. Feito isso imperioso esperar a oportunidade da fala. Viramos adultos e esquecemos nossa primeira aula da vida.

A empatia que também aprendemos observando os cortes de nossos amiguinhos vai sendo substituída pelas nossas distorções diante de nossos próprios arranhões. Aprendemos a nos doer demais de nossas dores e aí passamos a desaprender. Esquecemos de levantar a mão e esperar o momento certo. Falamos e falamos. Escapamos a oportunidade do silêncio.

A nossa inocência e espontaneidade de criança vai sendo substituída no contar dos anos por conceitos rígidos e simétricos, por medo e ignorância. Ah! E preconceito. Muitos dele. Em potes e mais potes eles vão sendo guardados.

Envelhecer que é adquirir cabelos brancos e rugas deveria nos tornar mais tolerantes, mais abertos para novos olhares. Acontece que neste planeta Terra existe uma maldição que nos cega e nos faz desaprender, emburrecer.

Estou sendo dura eu sei, mas é só observar os adultos. Poucos salvam.

Helena foi amaldiçoada naquela manhã e toda a sua inocência poderia ter ruído ali. Talvez tivera.

Queria poder abraçá-la e dizer que nada daquilo que ouvira deveria fazê-la se sentir menos do que ela merecia, mas a sua existência já denunciava ao mundo o que o mundo efetivamente era: mal. Com uma pitada de bem para não ser tão pessimista assim. Mas mesmo assim é belo. É grandioso. 

E por isso ela tinha o palhaço Pipoca, porque nem de todo mal o mundo é. Desde que se crie outros, ele pode se tornar melhor para se viver e a vida se torna mais leve. Aquele seu amigo confidente lhe devolvia os sonhos embrulhados em papel crepom, em formatos de bombons e vaga-lumes. E por ele ela esperava ansiosa naquela noite. Somente ele seria capaz de salvá-la.

Estava com o coração tão apertado que não conseguia fazer a conexão com o coração morada que habitava o teto do quarto e foi quando a sua última gota de esperança já quase ia se esvaindo que o Pipoca entrou pela janela sorrindo e pulando.

- Palhaço Pipoca! Ainda bem que você veio me ver hoje. Hoje, especialmente hoje, é o dia em que mais preciso de você na minha vida  inteira de sete anos, sabia?

- Confesso a você que estava meio atrapalhado com algumas crianças, mas pude sentir seu coração lá do Japão e vim correndo lhe socorrer. O que houve minha menina linda de cabelos pompom?

- Sabe Pipoca, eu sou uma tola, às vezes.

- Nunca é!

- Sim! Quase sempre... Mas não vou tomar muito do seu precioso tempo pois estou cansada também. O que ocorreu foi que a Sra. Eloísa estava na cozinha preparando o café e como sou curiosa parei para ouvir a conversa. E ela disse que as pessoas não querem criança grande como eu e as meninas. Que os adultos só querem bebês de colo, então - engoliu uma saliva seca e conseguiu dizer, - então, então... eu jamais serei adotada. - e pausou por segundos de respiração. - Dizem os adultos que crianças da minha idade são muito mais difíceis de serem educadas ao modo deles, como se as pessoas fossem igual àquelas massinhas de modelar... E fiquei pensando sabe Pipoca? Eu não quero mais ser adotada por ninguém. Não quero que um adulto me pegue como um brinquedo e me coloque as roupas que ele quer que eu use. Eu mesma quero escolher as minhas roupas. Eu mesma quero aprender a amarrar os meus sapatos do meu jeito. Eu mesma serei dona da minha vidinha! Hahaha. Mas não era bem assim que eu queria, pois na verdade esperava que alguém só viesse para me dar amor Pipoca. Somente amor...

Nem mesmo o palhaço Pipoca poderia acalentar a dor que Helena experimentou naquele dia. Seu pai havia sumido há meses. A mãe estava morta. A Sra. Eloísa seria para sempre incapaz de entender os sentimentos daquela menininha. Suas coleguinhas eram apenas como ela: desamadas e abandonadas.

E palhaço é para fazer dar risada. Palhaço é para trazer a alegria.

Qualquer palhaçada que ele fizesse ali agravaria ainda mais o estado de Helena e a única coisa que ele pode fazer foi dar a ela um colo gigante. Num piscar fez o coração cair do teto e envolver Helena inteira para que se sentisse quente e protegida e lhe disse:

- Faça desse coração vermelho a sua capa protetora minha doce Helena. Toda vez que alguém ameaçar seus sonhos imagine esse coração gigante envolvendo todo o seu corpo. Imagine também que dele saem raios dourados luminosos e penetrantes. Fique dentro dele o tempo necessário contra os predadores. Você sairá intacta e pronta para a nova batalha. Você Helena é a princesa perdida do Reino dos Corações e veio aqui para ensinar lições de amor. Atente para o que estou lhe dizendo. Não será fácil manter-se intacta. Os humanos ainda não têm o conhecimento do Reino mágico dos Corações. Eles tentarão lhe deter! Você muitas vezes sentirá o seu corpo sendo consumido por eles, sentirá desânimo e medo e é assim que eles sugam a sua energia. Então se proteja dentro deste coração vermelho e ajude este Reino dos Homens a se aproximarem do amor. Nunca, jamais se afaste dele, está me ouvindo?

Helena ouvia atentamente cada palavra do palhaço Pipoca e pouco a pouco foi se enchendo novamente daquela energia-amor. Ela ainda era muito nova para manipular todos aqueles conceitos, mas dentro de seu coração sabia que era especial, afinal, havia ganhado o concurso de poesias. Sim! Ela era especial e não precisava de ninguém para fazer dela um massinha de brincar. Um lego qualquer... Não queria mais uma família terrena.

Adormeceu suavemente agradecendo as estrelas que ela desdenhou naquela noite. O palhacinho Pipoca ainda tinha outros corações quebrados para restaurar e partiu para a próxima missão. Interminável missão. As estrelas sorriram e a Lua grande se aproximou bem perto da janela do quarto. Foi salva por mais uma dia. Era criança. Mas e quando se tornasse adulta? Deixemos para depois. Um dia de cada vez.

O PICADEIRO E UM CORAÇÃOOnde histórias criam vida. Descubra agora