Capítulo XIX

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Subi ao convés e encontrei o Ghost navegando a favor do vento com a retranca a boreste e se aproximando de um bote conhecido que ia no mesmo rumo, um pouco mais à frente. Todos os marinheiros estavam no convés, antecipando o que aconteceria quando Leach e Johnson fossem arrastados de volta para o navio.

Estávamos na metade do quarto de vigia. Louis veio à popa e assumiu o timão. O ar estava úmido e reparei que ele usava uma capa de chuva.

— O que vem por aí? — perguntei.

— Uma boa e honesta ventania, é o que tá parecendo — ele respondeu —, com uns pingos só pra molhar as ventas.

— Pena que eles foram avistados — comentei quando uma onda grande desviou um pouco o Ghost e o bote apareceu por trás das gibas.

Louis ajustou o timão e demorou a responder.

— Acho que eles não iam conseguir chegar em terra, senhor.

— Não?

— Não, senhor. Sentiu isso? — Uma rajada atingiu a escuna e ele precisou fazer uma manobra brusca para desviá-la do vento. — Aquela casca de ovo aguenta mais uma hora boiando num mar desses, foi sorte deles a gente aparecer.

Wolf Larsen, que estava conversando com os homens resgatados na parte intermediária do barco, veio a passos largos até a popa. A elasticidade felina de seu andar estava um pouco mais pronunciada que o habitual e seus olhos estavam acesos e penetrantes.

— Três graxeiros e um maquinista — disse a título de saudação. — Mas vamos transformá-los em marujos, ou pelo menos em remadores. E como está a donzela?

Não sei por quê, mas no momento em que ele a mencionou senti uma pontada como um talho de faca. Pensei ser apenas um melindre bobo de minha parte, mas a sensação persistiu contra a minha vontade e um erguer de ombros foi a única resposta que consegui dar.

Wolf Larsen contraiu os lábios e gracejou com um longo assobio.

— Qual o nome dela, então? — perguntou.

— Não sei — respondi. — Ela está dormindo. Estava muito cansada. Na verdade, eu esperava que o senhor soubesse de algo. Que barco era aquele?

— Um vapor dos correios — ele respondeu secamente. — The City of Tokyo, de São Francisco, rumando para Yokohama. Foi danificado pelo tufão. Uma banheira velha. Ficou esburacado de cima a baixo como uma peneira. Fazia quatro dias que estavam à deriva. E você não faz ideia de quem ou o quê ela é? Empregada, esposa, viúva? Muito bem, muito bem.

Ele balançou a cabeça de um jeito brincalhão e me encarou com ar de zombaria.

— O senhor pretende... — comecei a dizer. Queria saber se ele planejava deixar os náufragos em Yokohama, mas segurei a pergunta na ponta da língua.

— Pretendo o quê?

— O que pretende fazer com Leach e Johnson?

Ele balançou a cabeça.

— Não sei, Hump, não sei mesmo. Com esses novos acréscimos, já tenho toda a tripulação de que preciso.

— E eles têm a fuga que queriam — falei. — Por que não os trata de outra forma? Aceite-os a bordo e seja mais brando. O que quer que tenham feito, eles foram forçados.

— Por mim?

— Por você — respondi firme. — E já vou avisando, Wolf Larsen, que meu desejo de matá-lo poderá ofuscar o meu amor à vida, caso o senhor maltrate esses pobres desgraçados além da conta.

O lobo do mar (1904)Onde histórias criam vida. Descubra agora