Capítulo XXXII

56 7 0
                                    

Acordei oprimido por uma sensação misteriosa. Algo parecia fazer falta em meu redor. Mas o mistério e a opressão sumiram logo que percebi que era o vento. Eu havia adormecido naquele estado de tensão nervosa que acompanha os sobressaltos contínuos de som ou movimento e acordado ainda tenso, preparado para encontrar a pressão de algo que já não me afetava.

Como era a primeira noite em muitos meses que eu passava abrigado, cometi a extravagância de me demorar alguns minutos embaixo dos cobertores (que não estavam molhados com a neblina ou os espirros das ondas), analisando, primeiro, o efeito que a interrupção do vento exercia sobre mim, e em seguida o deleite que era estar deitado no colchão que Maud tinha feito com as próprias mãos. Depois de me vestir e abrir a porta, ouvi as ondas ainda batendo na praia em uma ladainha que atestava a fúria da noite anterior. O dia estava limpo e o sol brilhava. Eu havia dormido até tarde e agora experimentava uma súbita explosão de energia que me impelia a recuperar o tempo perdido, como cabia bem a um morador de Endeavour Island.

Botei os pés fora da cabana e estaquei. Eu acreditava piamente em meus olhos, mas o que eles me mostraram me atordoou. Bem ali na praia, a menos de vinte metros, com a proa virada para a frente, desmastreada, havia uma embarcação de casco negro. Os mastros e retrancas, enroscados em enxárcias, velas e lonas rasgadas, boiavam rente às laterais. Por pouco não esfreguei os olhos. Ali estava a cozinha que havíamos construído, o conhecido degrau do tombadilho, a cabine baixa que mal passava da altura da amurada. Era o Ghost.

Que aberração do destino o trouxera até aqui, justamente aqui? Qual a chance entre todas as chances? Vi o paredão sombrio e inacessível às minhas costas e mergulhei nas profundezas do desespero. Uma fuga seria impossível, estava fora de questão. Pensei em Maud, adormecida na cabana que tínhamos erguido juntos; lembrei-me do "Boa noite, Humphrey"; "minha mulher, minha parceira" soou em minha memória, mas era um sino fúnebre que tocava. E então tudo escureceu.

Pode ter durado uma fração de segundo, mas voltei a mim sem fazer a menor ideia de quanto tempo havia passado. Ali estava o Ghost com a proa apontada para a praia, o gurupés quebrado se projetando sobre a areia e as vergas emaranhadas roçando no costado ao sabor das ondas murmurantes. Algo precisava ser feito.

De repente comecei a estranhar o fato de que nada se movia a bordo. Todos os marujos deviam estar dormindo após uma noite inteira de esforços e estragos. Meu primeiro pensamento foi que talvez eu e Maud ainda tivéssemos alguma chance de escapar. E se pegássemos o bote e contornássemos o promontório antes de eles acordarem? Eu precisava chamá-la. Já tinha erguido a mão para bater em sua porta quando me lembrei das pequenas dimensões da ilha. Jamais conseguiríamos nos esconder nela. Não nos restava nada, a não ser o oceano vasto e hostil. Pensei em nossas cabaninhas aconchegantes e em nossos estoques de carne, óleo, líquen e madeira, e soube na hora que jamais sobreviveríamos ao mar do inverno e às grandes tempestades que vinham pela frente.

Então fiquei em frente à porta, hesitando em bater. Era impossível, impossível. A ideia desvairada de entrar e matá-la enquanto dormia atravessou minha mente. Mas de repente a melhor solução me veio num clarão. Todos os marinheiros estavam dormindo. Por que não me infiltrar a bordo do Ghost, seguir o caminho conhecido até a cama de Wolf Larsen e matá-lo enquanto dormia? Depois disso, bem... depois veríamos. Uma vez que ele estivesse morto, haveria tempo e espaço para planejar os próximos passos, e além disso a situação que viria depois, fosse qual fosse, não poderia ser pior que a atual.

Minha faca estava na cintura. Voltei à cabana para buscar a espingarda, me certifiquei de que estava carregada e caminhei até o Ghost. Com alguma dificuldade, entrando na água até a barriga, consegui subir a bordo. A escotilha do castelo de proa estava aberta. Fiquei imóvel para ouvir a respiração dos marujos, mas não havia respiração alguma. Quase me engasguei quando o pensamento me ocorreu: e se o Ghost estivesse abandonado? Escutei com mais atenção. Não havia ruído. Desci a escada com cautela. O lugar tinha aquele cheiro vazio e mofado de uma residência desabitada. Por toda parte havia uma camada grossa de vestimentas rasgadas e descartadas, velhas botinas, capas impermeáveis furadas, toda a bagagem do castelo de proa que fica inutilizada numa longa viagem.

O lobo do mar (1904)Onde histórias criam vida. Descubra agora