Sobre a autora
Laleska Freitas é desde nascença uma amante das coisas belas da vida, que na simplicidade lhe inspiram a continuar com fé no mundo. Sua trilha é marcada pelo aprender a ser a melhor versão de si para criar uma realidade mais jutas, digna e múltipla. Não entende em que ponto as profissões das pessoas começaram a definir quem são, e por isto não compactua com isto em sua biografia.
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Pâmela terminara a pouco o ensaio no Teatro Municipal e se encaminhava para a saída trocando prosa com outras dançarinas quando viu Janaína sentada numa cadeira próxima da saída, recebendo um copo d'água que um dos funcionários do teatro lhe entregava. A bailarina apertou o passo e logo estava próximo da companheira, abaixando-se para encarar seus olhos.
Janaína tremia dos pés à cabeça, sendo mais evidente tal movimento nas suas mãos. Gotas caíram do copo sobre sua roupa antes que ela pudesse se hidratar devido a tamanho tremor. Pâmela, preocupada, quase se esquecia que para olhares desconhecidos elas deviam aparentar ser amigas apenas — não podia arriscar ser internada por sofrer de homossexualismo tão próximo de sua primeira grande apresentação.
A cada golada Janaína se sentia mais tranquila, com a imagem das motocicletas ligadas sem saírem do lugar saindo de sua cabeça. Era sabido por todos, compartilhado no privado, o que aquele som ensurdecedor dos veículos de duas rodas queria dizer: alguém era inumanamente questionado pelos funcionários do Estado. Vargas posava bem nas fotos, quase parecia ser uma pessoa democrática e preocupada com o povo, mas seu carisma e populismo não alterava os fatos: o Brasil estava sob um regime ditatorial.
— O que houve, Jana? — Indagou Pâmela.
Apenas quando terminou o conteúdo do copo Janaína conseguiu reencontrar sua voz. Antes, em silêncio tentando se acalmar, praguejava mentalmente por ter decidido fazer aquele percurso até o Teatro Municipal. Trabalhava numa escola próximo da Central do Brasil e decidira vir andando até o teatro. Mesmo trabalhando com uma atividade física, Pâmela a considerava uma louca por fazer tamanha caminhada, principalmente quando tinha dinheiro para pegar uma condução. Mas o hábito da economia já estava internalizado dentro de Janaína, que aliás não achava a caminhada assim tão fatigante. Se arrependeu apenas ao ver o estado dos sapatos, que discordava fortemente sobre a intensidade da caminhada.
— Tomei um susto apenas! Vamos embora. — Levantou-se subitamente, o que Pâmela também o fez em seguida, com mais tranquilidade. — Muito obrigada pela água, senhor. — Disse para o funcionário que nem teve tempo de responder, pois logo Janaína puxava Pâmela para fora do teatro, sobrando a bailarina se despedir de sua companhia de dança e do funcionário do Teatro com um breve aceno.
Os olhos de Pâmela expressavam ainda maior preocupação, visto que a reação de Janaína fora muito atípica. Já estavam pela metade da cinelândia quando a bailarina segurou a professora pelo braço, o que lhe obrigou a diminuir os passos até parar. Janaína estava como sempre impecável, salvo o sapato, e isto evidenciava ainda mais sua face congelada e olhar sem vida. Estava ainda temerosa e Pâmela soube sem que ela precisasse falar que apenas conversariam em casa. Puxou a companheira para um forte abraço, o que pareceu ter efeito relaxante na moça, já que logo seus ombros cederam e um suspiro forte demarcou a mudança do ritmo de sua respiração. Voltaram em seguida a caminhar pareadas para o ponto do bonde (?) que lhes deixaria na porta do prédio onde moravam.
O silêncio se manteve até que ambas estivessem dentro de casa, mas Pâmela pode observar os detalhes que indicavam que Janaína estava mais calma. Pâmela achava engraçado como sua companheira era alguém de grandes emoções, sempre gesticulando e dramatizando o que sentia, porém os pequenos movimentos, os detalhes de suas performances, que realmente dizia seu estado de espírito. Janaína aprendera a ser assim com a vida, que sempre foi muito desafiadora, e ela se orgulhava de ter virado o jogo. Negra, nascida na periferia da cidade, desde muito cedo aprendera que os olhos tortos que recebia vinham mais da reação à sua cor de pele do que à sua personalidade. Aprendera então a entreter, comunicar-se de forma espalhafatosa e divertida, para fingir não se incomodar e manter o espírito forte, só assim pode quebrar todas as expectativas e ser professora de um colégio de renome. Seu riso e extroversão escondia o peso que carregava nas costas.
Pâmela lhe conquistou quando enxergou além. Era este seu charme: ser alguém taciturno e muito observadora, que só abria a boca para dizer verdades necessárias e certeiras. Era assim também que facilmente aprendia uma coreografia, mas o que a tornava uma extraordinária bailarina era sua capacidade de se expressar com o corpo. Todas as palavras que não utilizava eram ditas com cada movimento corporal ritmado, sendo no espetáculo coreográfico mais extrovertida que Janaína. Pâmela aliás se aproveitou deste exercício que movia a sua vida para declarar-se definitivamente para Janaína. A professora reclamara de como parecia ser a única com sentimentos, pois se declarava de inúmeras formas para a bailarina, sem nunca receber o mesmo. Pâmela então lhe convidou para ver sua coreografia solo, num espaço cultural mais simples quando a bailarina apenas engatinhava na carreira.
Isto gerou uma discussão, pois Janaína dizia não ver sentido naquela dança, que sempre lhe parecera coisa de rico, coisa que não era. Naquela época acabara de se formar e tivera que pegar o primeiro emprego que achasse, o que não significava um salário pomposo. Mas Pâmela revidou que não era muito diferente da linguagem de seus santos, de quando desciam nos corpos dos seus companheiros e dela mesma dançando. Usando os símbolos espirituais de Janaína como argumento, Pâmela convenceu que ela fosse vê-la, dizendo que a amava pela primeira vez com seu solo.
Janaína entendeu a mensagem, o que ficou óbvio para Pâmela quando, suada e na pose final, buscou pela na época namorada e viu seus olhos castanhos marejados enquanto lhe aplaudia e ria. Jana, como ela carinhosamente chamava, sempre lhe relembrava sobre o quanto fora aplaudida pela platéia, mas Pâmela não sabia dizer se ela exagerava, nada viu ou ouviu além de sua Jana a entender tudo o que sentia. Foi a partir desse dia também que Janaína percebeu que elas apenas se comunicavam de formas distintas, o que não queria dizer que ela não se importava ou outra paranóia sua.
Pâmela observou Jana abrir o apartamento, buscando por alguma pista sobre o que havia lhe deixado naquele estado. Adentraram conforme seus hábitos ditavam, com Janaína colocando a bolsa no primeiro espaço vago que viu e se encaminhando para a geladeira para se hidratar enquanto Pam pegou a bolsa de Jana e colocou no espaço reservado para isto, em seguida também guardando a sua. O apartamento em que viviam fora herdado por Pâmela, única filha de um casal abastado. Tivera uma vida mais cômoda que Jana, sendo mais rica e da cor branca, mas ainda assim era uma mulher lésbica que não visava casamento e sim independência, o que lhe gerou intensas brigas com seus pais. Mas ao verem uma das suas apresentações de Ballet repensaram sobre o estilo de vida. Morreram, no entanto, sem saber que Janaína era sua companheira, mas felizes dela ter uma grande amiga ao seu lado.
Enquanto Janaína sentia o olhar de Pam sobre si. Ela tinha esse jeito de caçadora, o que fazia sentido, dado o santo que lhe acompanhava. Enquanto dava algumas goladas seus olhos foram para a companheira. Via além do visível, enxergando ao seu lado espíritos que poderiam ser chamados de guias. Pam não acreditava em Deus nem nada do tipo, o que não fazia sentido para Jana, que via a influência do mundo espiritual em todas as instâncias da sua vida. Pâmela se acomodou na lateral do sofá, cruzando os braços na altura do peito sem desviar a direção de seu olhar.
— As motocicletas. — Janaína enfim disse enquanto depositava o copo vazio na pia. — Eu não consigo não pensar que poderia ser alguém do meu terreiro ou da minha religião ali. — Sua voz estava apenas em um tom fraco, mas lágrimas já escorriam de seu rosto e sua mão novamente tremia. Tinha pesadelos constantes em que se via no terreiro que era iniciada e tudo estava destruído porque a polícia descobrira o local onde ele se localizava. Começara a tê-los quando um outro terreiro dos arredores foi descoberto e tudo que nele tinha fora ou apreendido, ou destruído. Passara na frente do local com Pâmela, que logo lhe amparou, mas nada conseguiu tirar da sua cabeça a imagem de todas as cerâmicas sagradas destruídas e espalhadas pela calçada como se fossem marcas de um carnaval de rua.
Pâmela logo moveu-se para abraça-la de forma menos contida que a que aconteceu na praça. Ali, nos braços da mulher que amava, Jana se permitiu desabar e chorar tudo o que precisava. Ficou assim por alguns minutos até ser encaminhada para o sofá para assim ficar aninhada a Pâmela, que a cada instante ficava mais e mais furiosa. Não acreditava em Deus e por isto os ritos de Pâmela e toda sua ligação com o que considerava sagrado parecia uma perda de tempo completa. Quando mais calma, Janaína percebeu o desconforto da companheira e logo se virou para encara-la, reparando sua expressão. Na hora levantou-se furiosa e dizendo:
— Ah, não, Pâmela! De novo não! — A bailarina revirou os olhos e encarou um ponto oposto ao de Janaína. — Eu já te disse para respeitar minha crença!
— Eu respeito sua religião, eu só não gosto de te ver passando por risco de vida por conta disso! — Pâmela explicou enquanto voltava a encara-la.
— Pâmela, isso é importante para mim. É minha religião, é minha vocação espiritual! — Janaína diz em um tom de voz mais forte e irritado. Na mesma medida que Pam conseguia se atentar a detalhes, ela não compreendia aquilo que era concreto. Se não havia um motivo lógico, uma ligação passível de ser comprovada, ela não entendia. Antigamente considerava inexistente e ridicularizava, mas a relação com Janaína lhe ensinara a ser menor arrogante.
— Você é importante para mim, Jana. E é pedir demais te ver com tanto medo, se arriscando não só ao estar comigo, mas por conta desse negócio espiritual, e agir como se fosse apenas algo rotineiro. — Pâmela disse enquanto mirava um ponto a sua frente, com as mãos sobre o colo. Não mais olhava para Janaína, que sabia que isto era sinal de quão incomodada ela realmente estava. Quando com medo Jana tremia, chorava... Se expressava. Pam não. Seus pais sempre lhe ensinaram a se excelente e disciplinada, o que muito a ajudou a crescer no ballet, mas criou várias barreiras emocionais para que ela não perdesse o controle. Quando com medo Pam se fechava e preferia fingir-se convicta quando no fundo chorava.
Jana suspirou e cedeu. Aquilo era um motivo para discutir, porém o tom exarcebado não ajudava na comunicação, especialmente num tópico que era sensível as duas. Ela voltou então a se sentar próximo de Pam e segurou sua mão para gentilmente atrair sua atenção. Quando seus olhos esverdeados como as matas encaravam os seus castanhos como a terra poderia ser, ela voltou a falar.
— Lembra como seus pais contavam sobre as suas histórias de família, de como migraram para cá? Eu não ouvi isso dos meus. As histórias dos meus antepassados não eram tão cativantes ou bonitas, e muito das boas e velhas histórias se perderam. — Janaína segurou a outra mão de Pâmela, acomodando-se de lado no sofá para encara-la. — Mas quando eu entrei no terreiro pela primeira vez vi ali meus ancestrais e soube que eles eram heróis, guerreiros, caçadores, sábios, humildes e honrados. Pude conversar com eles, ouvir seus conselhos e assim conseguir saber qual era minha força. — Dizia com o coração e por isso um rio nasceu em seus olhos, correndo por seu rosto. — Eu preciso proteger a minha história, Pâmela. Eu preciso proteger minha ancestralidade mesmo que isto custe a minha vida.
Pâmela ouviu atenta. Era a primeira vez que essa discussão não terminava em gritaria e as duas decidindo por fim concordar em discordar. Sua expressão facial foi se amainando, tornando-se mais compreensiva e amorosa. Estar com Janaína era perceber um mundo diferente, porque divergiam em vários aspectos e vivências, que iam desde traços da personalidade aos do corpo, ambos interferindo em como a sociedade as lia. Pam levou as mãos ao rosto de Jana, secando-o com os polegares. Seus olhos se perderam no castanho da companheira, vendo ali o quanto ela se mostrava vulnerável.
Quando ambas perceberam que eram mais que namoradas, resolveram morar juntas. Os pais de Pâmela já haviam morrido e a escolha por seu apartamento tornou-se óbvia. Em seu paraíso particular, o casal decidiu não se chamar de esposa por ver nos casamentos tradicionais uma estrutura sem amor. Companheiras foi o termo escolhido pois demarcava a cumplicidade que tinham entre si, não excluindo a paixão e amor. Às vezes ambas pensavam em quão cansativo era ter essa relação, sendo tão diferentes e numa sociedade que via seu amor como doença todo dia era uma resistência, um aprendizado. Mas ambas também preferiam olhar a frente e pensar que os obstáculos eram passageiros.
Pâmela recostou a testa na de Janaína, em sincronia fechando os olhos. A discussão estava encerrada e palavras não precisavam ser ditas para demarcar o fim. Outra vontade fez com que a taciturna bailarina usasse da voz para se comunicar. Sem mudar de posição, Pâmela disse:
— Apesar das diferenças, é um prazer ser sua companheira.
— Também te amo. — Disse Janaína antes de beija-la.
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Coletânea Lesbohistórica
RomanceNos últimos meses, várias autoras reuniram para escrever contos situados em diversas épocas e lugares da História. A única exigência: que tivesse um casal lésbico. O resultado você encontra aqui.