Bilhetes para Nia - Isabella Shakur

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Sobre a autora

Isabella Shakur é uma estudante de 19 anos, viciada em livros românticos e sci fi que encontrou na escrita uma saída para imaginar o que quisesse sem restrições.

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Dezembro de 1945 — Quênia, África

No rádio tocava uma música romântica em som ambiente, Nia cantarolava aquela letra melosa enquanto vasculhava a pequena caixa cheia de bilhetes anônimos dedicados à ela.

Tinha alguns que ela não podia mais ler, pois era da época em que ela enxergava perfeitamente e podia entender letras cursivas sem passar a mão para decifrar cada palavra. Mas a sua melhor amiga Layla arranjou um jeito diferente para Nia voltar a entender o que os bilhetes diziam: pelo olfato.

O bilhete que mais mexeu com Nia, aquele que começou a jornada de bilhetes românticos anônimos carregava o cheiro de seu perfume favorito, tulipa e hortelã. O segundo bilhete que ela recebeu era aromatizado com rosas do campo, e assim a lista continua. Nia não se lembrava do que a maioria dizia, mas sentia pelo cheiro o quão especial cada um deles era.

— O que está fazendo? — a voz serena de Layla ecoou pelo quarto.

Nia pôde ouvir os passos da amiga se aproximando, ela também ouviu o colchão afundar atrás de si e decifrou que a amiga tinha se sentado.

— Lendo os bilhetes antigos, já que meu admirador secreto não me admira mais — ela soltou um suspiro sôfrego.

— Como é que você tem tanta certeza?

— Ele não me envia nada há duas semanas, Lay. Deve ter se cansado de esperar que eu o descubra, ou sente vergonha de gostar de uma garota deficiente.

Layla grunhiu insatisfeita quando ouviu a melhor amiga se desmerecer desse jeito. Seu comentário só a encorajou a lhe entregar a carta que ela segurava por horas se perguntando se devia entregar ou não.

— Espero que isso seja uma prova de que esse seu comentário está repleto de calúnias. — Layla se levantou e entregou a carta escrito em braile para Nia que estava sentada em uma cadeira de costas para a cama e de frente à uma escrivaninha.

— O que é isso? — Nia perguntou com curiosidade e esperança em seu tom de voz.

— É a carta da sua admiradora secreta que, claramente, ainda te admira. Bom, eu vou terminar de arrumar as coisas na sala. Se precisar, me chame.

Por um momento Nia tinha se esquecido de que não morava mais com os pais, de que tinha se mudado para perto da faculdade que ela começaria a cursar daqui um mês com a sua melhor amiga. No Quênia, não era bem visto uma mulher se dedicar mais aos estudos do que em arranjar um marido. 

O Sr. e a Sra. Bankole não gostavam da ideia de sua filha mais nova, Nia, nunca ter se interessado por um de seus pretendentes mais do que ela gostava de passar horas lendo um livro. Ainda mais depois do acidente que deixara Nia cega, eles temiam que nenhum dos homens ricos de Nairóbi olhariam para sua filha como antes.

Perdida nas lembranças em que ela implorou para os pais deixarem-na morar sozinha com Layla, Nia reparou que a amiga disse "sua admiradora secreta" e isso a deixou mais confusa ainda. Mas ela não iria deixar seus pensamentos atrapalharem a sua leitura e começou a ler a carta em busca de esclarecimentos.

"Para Nia, vulgo passarinho,

Ainda sou covarde o suficiente para não te falar a minha verdadeira identidade. A única forma que consigo expressar os meus sentimentos por você é através de papéis... sim, os papéis são reciclados, porque eu sei o quanto você se importa com o meio ambiente. Lembro da vez que você se recusou a fazer a prova do Sr. Chimbler e fez um discurso sobre a importância de materiais recicláveis na escola. Todo mundo te apoiou, mas na verdade só queriam cancelar a prova de matemática. Lembro quando você enviou uma carta puxando a orelha do governador sobre propagandas sexistas do governo, e dias depois, retiraram os outdoors da cidade.

Você sempre coloca tudo e todos em primeiro lugar, acho que foi isso que me fez ficar perdidamente apaixonada por você. Pronto, agora você já sabe que sou uma garota. Você também sabe sobre tantas coisas sobre mim, sabe os meus segredos, os meus desejos, os meus sonhos.

Sempre achei um absurdo essa ideia de amor. Essa ideia de me entregar por completo para outra pessoa. Mas quando eu menos percebi, já estava totalmente à mercê de você.

E eu não me arrependo."

Enquanto lia a carta, Nia teve alguns flashbacks de momentos que pareciam ser tão aleatórios mas que agora significavam tanta coisa.

Ela se lembrou de seu primeiro beijo aos 7 anos, das noites assistindo filmes estadunidenses e comendo besteiras, das noites de aumentar o rádio nas alturas e ouvir as radionovelas, de ligar a TV e ver programas em preto e branco, memórias dela rejeitando o pedido do capitão do time de basquete para ser seu par no baile porque ela já tinha uma companhia melhor atingiram em cheio sua mente confusa.

Nia se lembrou de quando roubou a garrafa de cachaça de seu pai e acabou ficando bêbada, naquela mesma noite ela ficou nua, sussurrou palavras doces, gemeu baixinho para não acordar seus pais e estremeceu quando chegou ao ápice com... ela. Essas eram memórias que ela tinha apagado de sua mente e conseguido viver bem sem elas, até agora.

Nia se levantou rapidamente da cadeira, esquecendo até de sua guia, ela tateava os móveis com a mão tentando se lembrar do local e quando reconheceu o corredor em frente ao quarto, ela pensou: "São 10 passos até a sala."

Um, dois, três... a cada passo seu coração acelerava, as borboletas que ela tanto ignorou por anos voltaram a atormenta-la e ela sabia o porquê. Quando chegou ao décimo passo ela estava ansiosa para contar à Layla a sua descoberta. Porém, ela não contava com um objeto desconhecido no caminho até o centro da sala e acabou se esbarrando nele, ouvindo-o se despedaçar no chão.

— Nia? O que está fazendo aqui? Por que não me chamou? Eu poderia te ajudar — Layla disse, preocupada. Se aproximando da amiga para lhe ajudar a se sentar no sofá.

— Eu... eu... descobri quem é a minha admiradora secreta.

— Ah... — Layla perdeu o fôlego, não sabendo como reagir. — Descobriu? E quem é?

— Você — respondeu Nia, não conseguindo controlar as lágrimas.

— Estava bem na minha frente e eu não vi. Literalmente. — Elas riram da coincidência das palavras, o que serviu para deixar o clima mais leve. — Você é a única pessoa que me chama de passarinho, é a única pessoa que conheço por completo mais do que a mim mesma, é a única pessoa que me fez ignorar os batimentos cardíacos acelerados, as borboletas e todo o suor desnecessário. Eu não acredito que convivi esse tempo todo com a resposta na ponta da língua. É você Layla. É você quem eu sempre amei.

— Eu também sempre te amei, passarinho. Foi horrível guardar isso sozinha por todo esse tempo.

Elas choravam, felizes por estarem desabafando e tristes por não souberem o que fazer com aquilo. Layla se lembrou das mulheres que foram presas por se assumirem lésb... Ela mal conseguia dizer a palavra sem sentir medo do que pudessem fazer com ela, Nia e a família das duas.

— O que a gente faz? O que eu sinto é tão valioso para continuar ignorando.

— Não sei como vai ser daqui para frente, mas no momento, precisamos recuperar o tempo perdido.

Layla disse antes de afastar o cabelo cacheado da amiga até a orelha para que assim, finalmente, ela pudesse beijar a sua boca. Um beijo afobado pela vontade de explorar mais, mas também leve e romântico demonstrando o quanto significava para as duas. Foi inocente e genuíno como quando elas tinham 7 anos, foi mágico e libertador como quando elas tinham 15 anos, só que dessa vez elas estavam sóbrias e não queriam mais lutar contra esse sentimento.

Coletânea LesbohistóricaOnde histórias criam vida. Descubra agora