Kath's POV
Ouço a chuva a bater nos vidros e a afugentar as forças que me fazem querer ficar na cama. Está um dia lindo. O cinzento das nuvens tempestuosas mistura-se com as poças no asfalto que refletem a falta de cor dos prédios enormes que se mostram à minha volta. As árvores não têm folhas, não têm vida, não têm nada. Estão adormecidas nas manhãs de fim de outono. Não se ouve o chilrear estridente dos pássaros, a chinfrineira dos ratos ou a balbúrdia dos animais de companhia. Todos eles ficam em casa, protegidos do mau tempo.
Entro no chuveiro e vejo as gotas de água aglomerarem-se de ambos os lados da janela. Penteio o cabelo loiro com os dedos e enfio as roupas escuras que contrastam com os meus olhos claros. Não como antes de sair de casa. Não preciso. Ponho os auscultadores nas orelhas e ignoro a meia dúzia de pessoas com que me cruzo a caminho da escola. Não preciso deles. Não preciso de quem não precisa de mim.
O dia passa arrastado. Fosse eu para onde fosse, aquele não era o sítio onde eu queria estar. Não. Eu quero mais. Eu mereço mais. É escusado tentar contentar-me com tão pouco se posso ter tanto. Ser tanto. Dirijo-me ao bosque, novamente com os auscultadores. Sinto o vento a resfriar-me a pele húmida pela chuva recém caída. Tateio os troncos molhados com as pontas dos dedos. Este é o meu lugar. Onde ninguém vê uma miúda de cara deslavada, com roupas largas e velhas, sempre escuras porque "não tem qualquer felicidade na vida, coitadinha". Sabem que vivo sozinha. Não é segredo para ninguém. Não é que se preocupem o suficiente para perguntar seja o que for mas, se o acaso interviesse e isso acontecesse... Não sei bem o que se sucederia. Mas não preciso deles. Não preciso de ninguém. Nunca precisei.
Chego finalmente ao pé da minha árvore. Um velho carvalho com raízes a sair da terra, como que convidativas à permanência, com protuberâncias que lhe desenhavam uma velha cara no tronco, tão apelativa como a cara de uma avó. Pensando bem nisso, este cenário parece o da Pocahontas, mas ainda não me apareceu nenhum inglês e eu não sou propriamente o melhor exemplo de índia. Pego no bloco e deixo-me ficar lá a desenhar.
Sou sobressaltada com uma mão no ombro. Não o ouvi nem vi chegar. Apanhou-me completamente desprevenida.
- Que estás a fazer? - Pergunta-me. Os seus olhos escuros perscrutam-me, ansioso por uma resposta. Como se não pudesse simplesmente olhar para mim e ver que estou a desenhar, a ouvir música e a fugir a todos os problemas que me perseguem quando em contacto com a população.
- Sai daqui. - Ordeno. Nem sequer preciso de olhar para ele para saber que a sua expressão emudeceu. Não gosto de pessoas. - Sai.
Em vez disso, senta-se na raiz ao meu lado, arranjando o cabelo à surfista e deixando cair o carapuço que o impedia de se encharcar. Permanecemos calados durante cerca de 20 minutos, até que ele não aguentou mais o som ensurdecedor do silêncio.
- Não tens de estar sempre sozinha, Kath.
- Kath? - Indaguei, baixando os auscultadores. - Ninguém me chama isso.
- Ninguém te chama nada.
- Ambos sabemos que isso não é verdade.
- Tu percebeste o que eu quis dizer. Ninguém tem de facto oportunidade de falar contigo para te poder chamar seja o que for.
- Se soubesses, percebias.
- Se me dissesses, eu sabia.
- Por favor, sai.
- Mas...
- Estou a pedir por favor. - Interrompi-o, num tom um pouco mais alto do que aquilo que queria. Vi-o de esguelha a levantar-se e respirar fundo enquanto olhava o céu. Senti-o desistir quando o vi ajeitar o capuz e o agasalho, colocar as mãos nos bolsos e simplesmente caminhar na direção oposta. Está bem, tem tentado falar comigo, mas isso não quer dizer que eu lhe deva algo. Não lhe pedi nada. Não preciso dele. Não preciso de ninguém. Tenho a minha árvore-casa.

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Sinceramente teu, Chuck
Mystery / ThrillerEsta é a história de uma pequena vila, longe o suficiente da cidade para que todos se conheçam, mas perto o suficiente para que todos se odeiem. Os segredos abundam e ainda ninguém conseguiu perceber se são só os segredos ou a tragédia e o drama tam...