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Kath's POV

Continuo sem perceber quais são os desígnios que o Universo tem para mim. Sou uma rapariga da ciência, não acredito em religião. No entanto, acredito que há alguma força maior, lá em cima ou cá embaixo, que tem a capacidade de controlar a minha vida. Quero dizer, alguma coisa aqui há-de me controlar, porque eu não sou de certeza.

A minha avó costumava dizer que eu sou apenas uma miúda mimada que nunca teve de lutar por nada na vida. Bem, acho que já não pode dizer isso. Na verdade, já nem pode dizer nada porque está morta. Mas o ponto não é esse. Já não sou a menina que a Dona Mary conheceu. Não sou a menina que ninguém conheceu. Já nem eu me conheço. Olho-me ao espelho e vejo os mesmos cabelos loiros e os mesmo olhos cinza, mas já não lhes vejo a vida que lhes via antes. Essa perdi-a já há uns anos, quando ainda não podia ter controlo de quem me controlava.
Quando me deito, se fechar os olhos, ainda tenho a sensação das mãos calejadas a vaguear o meu corpo infantil e desnudo. Lembro-me de achar que o fazia por me amar demais. Cada um mostra o amor que sente da forma que consegue. Lembro-me do peso do seu corpo sobre o meu dorso. Lembro-me da dor. Lembro-me dos gritos. Lembro-me de tudo. Mas mais ninguém se lembra, porque mais ninguém sabe. Não conhecem o efeito que umas garrafas a mais têm num homem recém enviuvado com uma filha que é a cara da falecida esposa e há pouco tempo se havia tornado mulher.
Lembro-me dos abortos forçados aos 14, aos 15 e aos 16.

Viram-me chorar aquando da sua morte, mas não fazem ideia de quantas daquelas lágrimas não se traduziam em felicidade pura por, finalmente, me ver livre daquele traste. Ainda assim, 7 meses depois o destino trocou-me as voltas novamente e o T nasceu. Andei apaixonada pelo ser que se mexia no meu ventre durante meses, até que o vi pela primeira vez. Era a cara chapada do pai. E eu não podia manter algo assim na minha vida. No más. E foi basicamente assim que o T, a minha preciosa recordação macabra, foi deixado à porta do convento, enrolado em mantas como se fosse um burrito e dentro de uma cesta como se fosse um animal que ninguém quis.

Pergunto-me se algum dia serei capaz de o distinguir no meio da multidão se os nossos caminhos se voltarem a cruzar. Quero acreditar que não se vai tornar em alguém igual aos progenitores, mas os genes não são os melhores. De um lado, o estado depressivo deixado por vários anos de abuso sexual, do outro o mesmo estado depressivo deixado por vários anos de abuso de álcool.
A verdade é que a vida é uma merda para quem não a sabe viver e eu não faço puto de ideia daquilo que estou a fazer com a minha. Mas ele saberá. Sei que tomei a escolha certa quando o deixei com as freiras. Vai ser criado com os valores certos e orar às forças em que acredita, algo que nunca teria comigo porque, por esta altura, já não sei se acredito na presença de alguma força positiva. Vai fazer o bem sem olhar a quem. Vai saber cozinhar e tratar de uma casa e da família que construir. Vai saber distinguir a filha da mulher. Vai ser um homem a sério. E, embora eu não vá estar lá para ver, vai ser o meu maior orgulho.

Sinceramente teu, ChuckOnde histórias criam vida. Descubra agora