Passava devagar pelas ruas, lojas, cafeterias, locais tão familiares, se despedindo em silêncio. Mas algo mudou. A cidade parecia velha, com prédios antigos, estragados, tudo muito sujo. O cheiro de podre na rua não era normal, o gosto de sangue em sua boca também não. A cada passo o cenário piorava. Olhava as casas e só via ruínas, tudo acabado, enferrujado. Assustava-se em focar o rosto das pessoas, que agora eram criaturas humanóides. Alguns lembravam as figuras daquele livro maldito, pequenos animais desfigurados. Outros tinham o mesmo corpo humano, mas com pele cinza e cheia de machucados e queimaduras. Suas faces não existiam, só restava um buraco com pele rasgada e ensanguentada nas bordas do mesmo. E ainda assim, parecia que olhavam diretamente nos olhos dele.
Ouviu um grito ensurdecedor e olhou para o céu. Aquele ser que falou na sua biblioteca agora voava e gargalhava lá do alto, dando rasantes e fazendo o rapaz se agachar diversas vezes, gemendo de medo, chorando baixinho e pedindo: "Me deixe em paz, eu não quero isso, apenas me largue. Me deixe em paz por favor! "
As pessoas em volta o olhavam preocupadas. Pobre jovem, seria algum problema com drogas? Estaria bêbado? Enlouqueceu tão novo... mantinham distância e lhe fitavam com olhar de pena. Ele devolvia o olhar de forma assustada, quase louca.
Depois que a entidade alada sumiu, ele se pôs de pé e disparou a correr. Correu sem parar, por muito tempo, puxando o ar e engolfando o cheiro de enxofre, com as pernas queimando tamanho o esforço na corrida. Não parou até chegar a um pequeno rio já na área remota, quase rural, da cidade. Não era uma cidade tão grande, o que ajudou a encontrar o que ele queria com um tempo médio de caminhada.
Olhando o luar refletir na água calma do rio, tentou respirar tranquilamente e se lembrar uma última vez de sua família, seus amigos, sua vida que agora não mais existia. O que ele tinha feito?! Aquela alegria, o amor que sentia emanar dos seus pais, os festejos com os amigos a cada vitória adquirida na faculdade... ele perdeu tudo por ganância. E agora estava ali, no escuro, sozinho, apenas o céu vendo seu desespero e tristeza. Se deixou cair de joelhos e uma lágrima solitária escorreu em sua face.
Mas não pôde sofrer suas perdas por muito tempo. Aquele ser voltava a sobrevoa-lo. E no momento em que ouviu um grito demoníaco, sentiu pontadas na cabeça, como pequenas e afiadas agulhas entrando vagarosamente no seu crânio. Seu corpo queimava, seu estômago revirava e uma pressão terrível na sua cabeça quase o fez desmaiar novamente.
As criaturas, antes no seu pensamento, agora gritavam em volta dele. Cenas passavam em sua mente e eram terríveis de assistir. Prédios em chamas, sua faculdade caindo como um castelo de areia, amigos mortos faltando pedaços, animais nunca antes vistos atacando pessoas horrorizadas nas ruas. Fogo, dor e destruição por todos os lados. E no centro de tudo, lá estava ele mesmo, agora com os mesmos olhos, garras e asas daquela besta que sobrevoava sua cabeça. Os sons de gritos, pedidos de socorro, choro e explosões, deram lugar a uma única frase:
"Meu jovem rapaz, nós faremos isso por onde passarmos. Isso é só o início! Obrigado por me evocar. "
Ele não suportava mais, aquilo era o máximo que conseguia aguentar! Falhou em desfazer tudo aquilo, mas não falharia agora.
Com dificuldade, se ergueu, respirou e, sem deixar se influenciar pelas criaturas ao seu redor, foi andando pela estradinha de chão que levava até o barranco dos pescadores. Cambaleante, sentia suas forças diminuírem a cada passo, enquanto a voz dizia que já era tarde, que tudo acabaria ali. Ele percebia seu corpo parando aos poucos de responder seus comandos, estavam se apossando dele! Ele precisa suportar um pouco mais, não poderia ceder! Sentiu garras rasgando seu casaco e chegarem na pele das suas costas. Gritou de dor, mas se manteve firme. Mais alguns passos e estava no lugar certo. Olhou o céu...
"Rapazinho, você não tem essa coragem. Está fraco e amedrontado, ninguém pode te ajudar. Deixe cumprir o ritual e se entregue. "
Aquele garoto sorriu, fechou os olhos uma última vez e disse baixinho:
"Eu errei, mas não vou concretizar meu erro. "
E se deixou submergir...
A entidade alada soltou um grande berro vindo das profundezas do inferno e voou em direção ao rio, mas não viu nenhum sinal do garoto. As criaturas na margem urravam ensandecidas. Nuvens baixas começaram a se precipitar, juntamente com trovões.
Uma a uma as criaturas desapareceram, emitindo grunhidos e rangendo os dentes enquanto, lá do alto, o ser alado praguejava injúrias contra o jovem, acusando-o de ter estragado seu reinado no mundo dos mortais. Desapareceu em um relâmpago, soltando um guincho agudo, que acordou os cães da redondeza.

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Não Abra o Livro
HorrorA ganância, o poder, a vontade de estar por cima... Até onde podemos ir pela busca do que queremos? Quando essa busca se torna desenfreada? E o mais importante: Existe um caminho de volta? Um conto curto que nos ensina a dosar nossas vontades, ou no...