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Quando a noite chegou, ele sabia que seu tempo acabara. Vestiu seu casaco e saiu. Não queria que a sua casa, local de tantas alegrias, fosse cenário do último horror que lhe aguardava.

As vozes em sua cabeça, antes baixas e irritantes, agora gargalhavam com escárnio, gritavam abominações, eram insuportáveis. Aquilo precisava acabar, mas ele sabia que não seria rápido. Desde o dia.... Aquele maldito dia! Ele se lembrava com tristeza do dia em que encontrou aquele livro no fundo da estante, nas doações da biblioteca. Escuro, antigo, misterioso; logo envolveu-se nas páginas e se deixou fisgar pelas palavras arcaicas e mágicas.

No primeiro dia, a insônia foi sua companheira e as intermináveis frases e imagens daquele livro se apossaram da sua madrugada. Assim continuou, dia após dia, até hoje....

O envolvimento com a escrita antiga daquele livro estava explícito na sua vida. Já não saía, se dedicava cada vez menos aos estudos, se esquecia de arrumar e até mesmo de comer. Mas o conhecimento que adquiria... ah! Ele valia tudo isso! Era místico, profundo, detinha segredos que davam ao jovem leitor uma sensação de poder nunca sentida. Se apenas lendo, esse poder era sentido, o que sentiria se praticasse aqueles ritos que lia? Se proferisse corretamente aquelas palavras? Poder!

E suas obrigações? As outras coisas do seu cotidiano? Seu rendimento na faculdade caiu, sua família pedia notícias e visita, seus amigos estavam preocupados. Cada vez que pensava nisso, sentia como se ouvisse sussurros em sua mente, dizendo que o livro traria sucesso maior do que a academia poderia lhe dar, que teria não só amigos, mas admiradores, que sua família se orgulharia dele. Bom, o que poderia dar errado? Pensou ele. E se pôs a cancelar reuniões, estudos, viagens, qualquer coisa que ficasse no caminho entre ele e o seu livro.

Começou os rituais, indo conforme o seu "pensamento" lhe sugeria. No segundo rito, pensou ouvir passos na casa, além de sombras e risos. No quinto, sentiu tonturas e dores de cabeça terríveis. Desmaiou.

Quando acordou, viu marcas por toda a casa. Nas paredes, chão, móveis. Pareciam pegadas ou... garras. Definitivamente algo esteve ali enquanto ele estava desacordado. E o seu terror foi maior quando descobriu, no banho, que não só a casa estava marcada, mas seu corpo também, pelas mesmas garras que encontrou nos móveis.

Naquela noite dormiu, tamanho o seu cansaço. Mas não teve bons sonhos. Viu, horrorizado, os donos das vozes que insistiam na sua mente. Criaturas zombeteiras, com olhar maléfico, sorrisos que congelavam a alma de quem os visse. Corpos pútridos, cheirando a enxofre e sangue. Esse cheiro se tornou tão forte que mesmo acordado, sentia por todo canto aquele odor terrível. As criaturas riam gargalhavam, apontavam para ele com imensas garras sujas. Falavam em morte, inferno, em almas corrompidas. E diziam que o fim do nosso jovem estava próximo, que logo ele entraria no abismo em que arderia pela eternidade, vendo atrocidades e as sentindo eternamente.

Ao acordar, foi de encontro ao livro e ignorando os gritos e frases em sua cabeça, rasgou-o em pedaços, depois ateou fogo. Neste momento, jurou ver na fumaça que saía daquela pequena pilha em brasa, um rosto cadavérico, com olhos negros e fundos, e uma bocarra com longos e afiados dentes. Parecia sorrir ameaçadoramente para ele. O cheiro de podridão não parecia vir apenas do livro, mas de todo e qualquer lugar que o jovem estava. Parecia ser dele.

Sua mente já não era mais sua, seu pensamento já não era secreto. E as revelações feitas por aqueles pequenos demônios, noite após noite nos sonhos, o enlouquecia cada vez mais. Não comia, não bebia, a casa sucumbiu ao pó e ao mofo. Também ele, sucumbiu ao mal que leu com afinco e agora, reinava dentro dele. Pensou em procurar ajuda, mas seus amigos já não o procuravam mais, provavelmente não acreditariam em nenhuma palavra. E sua família? Não.... Os pouparia até o último momento. Estavam fora de perigo, longe dali. Seria melhor assim. Salvo a companhia diabólica que se fazia notar pelos sons na casa e o falatório em sua mente, ele sabia que estava sozinho e que provocou tudo isso. As vozes afirmavam: Culpado! Você é o culpado! Vai pagar! Hoje! E riam, fazendo-o arrancar os cabelos e apertar as mãos nas têmporas.

A tarde estava ensolarada, mas ali na casa, o clima frio, sombrio, reinava. Um frio que não era normal. Ele sabia que era algo sobrenatural e nefasto. Os barulhos, agora altos e assustadores, pareciam vir de todos os cômodos da casa ao mesmo tempo, o que fazia o jovem saltar de susto a cada som. Sua respiração já estava ofegante. Ele precisava agir depressa ou perderia a razão antes de qualquer ato. Pensar era difícil. Seu coração batia descompassadamente. Seu corpo tremia de maneira intensa. Ele puxava o ar para seus pulmões, mas era difícil respirar aquele ar fétido, pesado, insuportável!

Decidiu pesquisar em sua pequena biblioteca se havia algo para quebrar os rituais daquele livro. Além de não encontrar nada, agora via as criaturas nos cantos, fitando-o nos olhos, sorrindo com aquelas presas escorrendo um líquido viscoso. Algo grande e negro fez barulho no teto da biblioteca, chamando a atenção para si. Um ser enorme, escuro como a noite, olhos grandes e brilhantes, não se via sua boca, mas ele falava com voz humana, grave e devagar:

"Está assustado rapaz? Qual o motivo? Você me chamou, leu meu livro, me procurou em cada página, parou sua vida para estudar a minha. Você, pequeno humano, agora é todo meu! Ouviu o chamado naquela velha biblioteca. Senti sua curiosidade, sua necessidade de poder. Quando abriu o livro, se tornou um dos meus, se entregou. Fez tudo, leu cada palavra contida naquele tomo. Quer o poder, a facilidade de pensar e entender todas as coisas? Eu lhe dou, mas você tem um pequeno preço a pagar. Assinou o último rito com seu sangue, quando o gotejou na taça e ofereceu a mim... E eu aceitei! Agora quero o resto do pagamento. Quero o seu corpo! Sua alma adormecerá, seu espírito dará lugar a mim e eu viverei novamente entre os humanos através de você. É uma possessão, pode-se dizer, mas como sou bondoso, deixo você espiar seu mundo vez ou outra.

Não tente fugir, não há como escapar.

Não tente desfazer, você confirmou com seu sangue!

Logo você será totalmente meu. Estou ansioso..."

Aquele demônio se aproximou e calmamente passou a imensa garra no rosto do pobre jovem... ele estremeceu, seus olhos reviraram nas órbitas, tudo escureceu e ele caiu.

Levantou do chão empoeirado e viu que já era noite. Sem se demorar, trancou todos os cômodos, fechou as janelas, se certificou de que nenhuma cinza daquele livro diabólico tinha saído do recipiente que o queimou. Já na porta da frente, deu uma última olhada para tudo que estava deixando, sabia ele, para sempre.

Vestiu seu casaco e saiu.

Não Abra o LivroOnde histórias criam vida. Descubra agora