20. Primeiros Passos [Ryota]

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Ryota gostava de ouvir os gritos e o barulho dos pés atingindo a terra batida ao final dos movimentos sincronizados da tropa

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Ryota gostava de ouvir os gritos e o barulho dos pés atingindo a terra batida ao final dos movimentos sincronizados da tropa. Yuro guiava as posições marciais dos soldados ao som do tambor que dava o ritmo ao treinamento. Apesar de alguns vícios e imprecisões, o antigo camponês, crescido em meio a uma plantação de arroz sem nenhum tipo de estudo em esgrima, gozava de uma técnica louvável. Demonstrava firmeza em sua postura e aptidão natural para a liderança, tendo desenvoltura não só com os aldeões vindos do Conselho, como também com os soldados que já integravam a guarda desde antes a chegada de Takeso.

O samurai se aproximou do parapeito da varanda e sentiu as gotas da chuva em seu rosto. Dali, seus homens podiam vê-lo assistindo aos exercícios. Sabia que sua presença dava a eles maior determinação e força de espírito e pretendia acompanhá-los ainda mais de perto, não só os ensinando técnicas de esgrima e táticas de combate, mas, acima de tudo, incitando-os a abraçarem um objetivo comum.

Algo essencial para que eles se tornassem um exército coeso e disciplinado.

Como pregava a série de livros de Montoku, As Seis Lâminas do Imperador, um bom soldado poderia fraquejar uma vez antes de se sacrificar pelo seu senhor, duas, caso fosse pela sua própria honra, mas, pelo bem máximo da tropa, tinha de se sacrificar sem pensar.

'Algo ainda intangível para esses guerreiros.', pensou.

Os mais antigos na guarda, integrados antes da chegada do atual Kerai, sentiam-se desprestigiados pelo destaque natural dado ao grupo mais qualificado que viera com Takeso. Em contrapartida, ambos repudiavam os companheiros trazidos por Yuro do Conselho da Terra.

Homens com experiências de vida tão diferentes e com desejos tão conflitantes não seriam moldados num corpo sólido, inquebrantável, com facilidade. Era, sem dúvida alguma, o maior desafio de sua vida.

A tropa gritou enquanto finalizava mais uma posição e seus corpos expulsaram a água que escorriam em seus quimonos. Na última fileira, dois soldados recém incorporados tentaram disfarçar a execução errada dos movimentos, mas não evitaram uma reprimenda de Yuro. Nenhum tipo de deboche foi dado. Nem mesmo um risinho abafado. Desde a morte de Tanaka, os soldados estavam silenciosos, respeitosos, cientes de que a disciplina poderia salvar-lhes a vida.

O que era preocupante.

Guerreiros não treinavam o corpo e o espírito para que aumentassem suas chances de sobrevivência. Tacanho objetivo, tornava-lhes fracos. Praticavam, na verdade, o desapego, para que estivessem sempre preparados para a morte. O fim era algo inevitável e um verdadeiro soldado tinha de aceita-lo.

O fim...

'A guerra ultrapassou o centro do Império', lembrou.

As palavras de Kobayashi ribombaram em sua cabeça como o sopro oco do tambor. A afirmação do Primeiro Ministro ao final da reunião sobre os conflitos na fronteira noroeste de Gunma levava a crer que as tropas do Norte tinham enfim avançado além da Capital Imperial.

Uma vitória determinante dos insurgentes.

Mas a lógica dava a Ryota outras duas possibilidades: ou os nortenhos haviam ignorado a Capital num primeiro momento, preferindo atacar diretamente a maior cidade guerreira do Sul, a mesma que cedia soldados para o Imperador, ou os conflitos em Gunma eram resultado de revoltas internas ou mesmo de uma investida de algum inimigo vizinho. A guerra costumava inflamar antigas divergências mantidas até então sob frágeis acordos.

De qualquer maneira, fosse qual fosse a verdade sobre as batalhas em Gunma, Ryota tinha de se preparar. Caso os senhores dos Campos das Crinas caíssem derrotados, restaria apenas pequenas vilas agrícolas entre Uruma e as tropas mais ferozes do Norte.

A euforia apoderou-se de seu corpo e, sem perceber, levara a mão ao cabo da espada. Treinara por longos e sofridos anos para enfrentar momentos como aquele. Estava ansioso para agir, para participar de algo tão grandioso quanto aquela guerra, que, independentemente de seus motivos políticos e pessoais, faria parte imponderável da história.

Seu capítulo começava a ser escrito naquela noite, com a chegada da carruagem durante o festival. Por mais que se esforçasse em acreditar que nada de inoportuno fosse acontecer, seu íntimo sussurrava em seus ouvidos a certeza de que o misterioso visitante tinha relação direta com a guerra do Norte. E isso, naquele momento, o deixava estranhamente empolgado.

– Senhor – Ogu despertou-o, falando às suas costas. – Já passei as ordens ao meu irmão, e, logo, logo, ele estará aqui.

– Ótimo – disse Ryota, fitando-o.

O gigante continuava com uma expressão fechada, abatida, por não ter sido escolhido para a missão da carruagem. A opção pelo irmão talvez o tivesse deixado ainda mais indignado, mas isso pouco importava. A missão era prioridade e não o melindre de um soldado amolecido pelos anos de calmaria em Uruma.

– Organize seu grupo e desça imediatamente para as fazendas. Quero que vasculhe cada trilha, cada passagem que chega à Uruma.

– Sim, senhor.

– Fique de olho nos homens de Shimada. Eles podem querer aprontar alguma com vocês. Seja firme.

– Claro, senhor. Serei – afirmou o gigante, agora confiante, com um leve sorriso no rosto.

Ryota se voltou para os soldados que ainda treinavam no pátio. A chuva torrencial escondia-os sob uma cortina acinzentada e abafava os sons dos seus gritos.

– Espero que mostre a Shimada que não mandei meu melhor soldado para lá à toa – disse, sabendo que o elogio o surpreenderia.

Apesar das pequenas indisciplinas, Ogu merecia seu reconhecimento. Era fiel e voluntarioso, talvez o único de todos ali que se sacrificaria pelo bem da guarda.

– S-sim... – gaguejou, confuso, quase espantado, parando por uns instantes para digerir as palavras de Ryota. – Pode deixar comigo, senhor! – Concluiu, com sua velha e surrada risada.

– Dispensado, soldado.

Depois de uma longa e desajeitada reverência, Ogu saiu da varanda, demonstrando estar bem mais satisfeito do que quando havia chegado.

O Dragão de UrumaOnde histórias criam vida. Descubra agora