36. A Natureza do Samurai [Ryota]

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'O tigre não poupa a corça, pois saciar a fome é sua verdade

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'O tigre não poupa a corça, pois saciar a fome é sua verdade.'

Ryota sussurrou o provérbio enquanto atacava o vazio com a espada. O ruído do ar sendo cortado reverberou pelo pátio. Desferiu mais algumas estocadas ao longo de todo o piso elevado e estancou o movimento numa postura de defesa. Os músculos estralaram sob a tensão da posição escolhida. De olhos fechados, acompanhou seus batimentos amainarem. Aos poucos, a fornalha que queimava em seu peito, alimentada pelos últimos acontecimentos, era extinguida pelo frio da arma em suas mãos.

Gritou e sentiu escapar de seu corpo o veneno que contaminava seu sangue. O samurai posicionou a lâmina sobre a cabeça e saltou de volta os metros que antes havia percorrido, aterrissando com um golpe reto e pesado.

Flertar com a morte duas vezes em tão pouco tempo cobrava seu preço. Quanto mais Ryota se aproximava de seus instintos primitivos, arrebatado pela ânsia de sobrevivência, mais forte ficava a Serpente. A pressão que sofria como primeiro chefe da guarda também contribuía para que, aos poucos, perdesse o controle de suas emoções. A agressividade com que reagira a Yuro, a insegurança a respeito da tropa e até mesmo a irritação com a demora na cicatrização do ferimento eram sinais de uma presença cada vez maior de seu espírito animal.

Como defendia Takeso, um samurai tinha de ter uma mente límpida e fluída como uma nascente de rio. Equilíbrio que Ryota ultimamente só conseguia desfrutar durante o treinamento, quando envolvido pelo frio do metal.

'O homem serve à sua natureza...', murmurou.

Ryota embainhou a espada e caminhou até um balde de madeira com água encostado na parede. Na varanda, aglomerados, um grupo de soldados acompanhava seu treinamento. Não conversavam, apenas fitavam-no, curiosos. Apoiou a perna esquerda na borda do balde e levantou o quimono encharcado de sangue. Enfim, o ferimento ardeu. Lavou-o com cuidado e usou uma toalha pendurada na mureta de pedra para limpar o rosto e os braços suados. Estava pronto para enfrentar Shinishiro.

'A natureza do samurai é servir.'

Foi a resposta que encontrara ao final do treinamento. Tinha o dever de servir seu senhor, mas isso, naquela situação, não significava obedecê-lo.

O Kerai havia trazido à Uruma a nova política Imperial que desqualificava a figura do samurai, delegando ao governo o julgamento para qualquer tipo de crime, fosse ele um furto de verduras ou mesmo a traição ao governo, o pior deles. Como os próprios magistrados da capital costumavam afirmar, o objetivo das recentes medidas era encontrar sentenças mais humanitárias, que evitassem a execução primária de homens que ainda poderiam contribuir para o Império.

Não seria absurdo supor que o Kerai escolheria uma pena mais branda para Shinishiro e que essa decisão traria o possível desmoronamento da milícia. A falta de rigor por parte das lideranças incitaria o descomprometimento da tropa e possíveis novas insubordinações. Em consequência, com uma guarda combalida, a iminência de uma revolta em Uruma se intensificaria. Cabia a Ryota proteger seu senhor de suas próprias obrigações com o Império. Caso decidisse executar Shinishiro antes de seu retorno, seria ele e não o Kerai a ser acusado de desobedecer uma ordem Imperial.

A natureza de Shinishiro era a covardia e, como um covarde, ele deveria dar cabo de sua própria vida, lavando com sangue sua existência vergonhosa. Era o que Ryota faria em seu lugar. Como uma corça acuada pelo tigre, Shinishiro tinha de ser executado.

Essa era a verdade.

Jogou a toalha suja de sangue no balde, ajeitou o quimono e caminhou até a varanda. Os soldados baixaram a cabeça em respeito e abriram um corredor para que ele pudesse entrar no prédio. Desceu as escadas até os calabouços e sinalizou para que os guardas abrissem a cela de Shinishiro. Só decifrou o olhar orgulhoso de um deles, quando se deparou com o prisioneiro encolhido na parede, com inúmeros hematomas no rosto e no corpo.

A tortura sofrida por Shinishiro deixava claro que seus soldados não tolerariam nenhum tipo de traição.

Ryota encarou os dois guardas por um momento, lutando para conter a indignação, e, depois de se sentar à frente de Shinishiro, ordenou que os deixassem sozinhos. O prisioneiro esperou os soldados saírem para se acomodar no canto da cela. Seu olhar apavorado não esconderia o que ele havia sofrido à noite mesmo que seus machucados não estivessem à vista.

– Shinishiro, lhe darei uma única chance de você se defender.

O soldado deixou escapar um gemido sofrido e tossiu ao sentir dor.

– Senhor... Me perdoe... Me perdoe, senhor!

– Acalme-se, Shinishiro. Seu destempero não o ajudará neste momento.

– Desculpe, senhor – tentou se acalmar, enxugando os olhos. – Eu sou um covarde, senhor. Me perdoe! Eu não deveria ter fugido... Eu não tinha o direito de traí-lo, senhor!

– Então porque o fez, Shinishiro? Sua atitude matou um de seus companheiros e quase resultou no nosso fracasso. Você tem ideia do quão grave foi sua traição?

– Tenho, senhor. – admitiu, quase voltando a chorar. – Eu sou um maldito de um covarde, senhor. Não há desculpas para o meu erro. Eu juro que não quis causar tanto mal. Mas eu estava apavorado, senhor. Tive medo de não poder ver mais meu filho. De nunca mais cuidar da minha mulher... Desculpa, senhor! Eu não deveria ser tão covarde!

Tinha de ser o tigre. Apenas o tigre.

– O Império está em guerra, Shinishiro. O que torna inevitável que encontremos batalhas aqui em Uruma ou em qualquer outro lugar. Você diz querer cuidar de sua família. Mas me responda, que melhor cuidado há que não seja lutando por ela? Você perdeu uma chance de honrá-la. De lutar por seu filho e por sua esposa. Um soldado tem a honrosa missão de morrer num campo de batalha para que os outros gozem de um pouco de paz. Eu não saberia viver com sua vergonha, Shinishiro.

– Me desculpe, senhor. Eu sou um covarde. – Shinishiro cobriu o rosto com as mãos, deixando as lágrimas escorrerem pelos dedos. – Eu fracassei com o senhor... E com minha família. Não mereço misericórdia. Me perdoe, senhor.

– Deixarei que encontre sua família para que possa pedir perdão a eles.

Shinishiro o encarou, assustado, e agarrou-se aos seus pés.

– Me dê mais uma chance, senhor! Uma oportunidade de honrar o senhor e a minha família. Eu lhe imploro!

– Largue-me, Shinishiro! – gritou, arrancando a perna das mãos do prisioneiro. – Você teve sua chance. Guardas, abram a cela!

Os soldados correram para abrir a porta da cela e não esconderam a satisfação ao encontrarem Shinishiro de joelhos, com cabeça enfiada no tatame, chorando como uma criança apavorada.

– Vocês dois. Quero que o lavem e cuidem de seus ferimentos. Peçam ajuda a Sakiko. – Ryota fitou-os nos olhos. – E se o machucarem mais uma vez, serão mortos pela minha espada! 

O Dragão de UrumaOnde histórias criam vida. Descubra agora