(Um dia antes)
A vendedora na calçada anunciava a novidade do dia, uma mini lanterna que captava a luz solar. Você a deixava ao ar livre durante as horas de sol e quando o crepúsculo chegasse ela estaria pronta. Poderia ser usada de forma segura na pele. A mulher garantia que substituía as pílulas obrigatórias.
Lia não acreditava naquilo. No mínimo deveria causar algum tipo de câncer, além do mais já existiam luzes artificiais que conseguiam imitar a luz solar sem os malefícios, e as pílulas não eram tão ruins assim.
A mulher gritava tão alto e era tão persuasiva que Lia acabou se aproximando, uma pequena multidão começava a se formar em volta da pequena mesa que continha dezenas de pequenos cilíndros que pareciam feitos de algum tipo de metal. Sua mãe já havia a alertado sobre esse tipo de vendedor, mas ela claramente não havia dado ouvidos, pois as botas que usava eram uma prova nítida de sua teimosia.
Havia as adquirido de uma vendedora similar aquela. O calçado era idêntico ao original, mas por um preço muitas vezes mais acessível e sendo excluído o pequeno desconforto que estava sentindo, as botas eram quase perfeitas.
Lia se afastou da multidão e pescou o celular no bolso do vestido que usava. O fino aparelho que ao contrário das botas havia lhe custado uma certa fortuna, acendeu assim que ela deslizou o dedo indicador pela tela. O visor mostrava o horário 19:00, indicando que ela precisava se apressar se não quisesse se atrasar para a Academia de Referência em Ensino, pois tinha apenas quinze minutos se não quisesse ser trancada do lado de fora.
Assim que chegou ao enorme portão de ferro que dava entrada para o prédio de cinco andares a inspetora já movia as pesadas chapas. Lia escorregou rapidamente para dentro. Ela tivera sorte por estar a apenas alguns quarteirões da ARE, diversas faltas com certeza não a ajudariam a manter a bolsa de estudos.
— Aí está você! — Mel sua melhor amiga exclamou assim que a viu. A garota morena e alta caminhou até Lia como se o chão a fizesse flutuar.
— Esse lugar está totalmente placi hoje — ela abraçou Lia de uma maneira em que apenas suas mãos e pulsos tocassem umas nas outras. Era seu cumprimento habitual — Aliás adorei suas botas. São novas?
— A aula sequer começou e você já está entediada — Lia vestiu sua máscara popular como era seu costume ao adentrar a ARE — São novas sim, comprei no último fim de semana — ela se referiu as botas as exibindo para a amiga.
— Precisa me dizer o nome dessa loja depois — Lia assentiu pensando que jamais revelaria a Mel onde as havia comprado.
— Você viu a calça daquela esquisita do primeiro ano? — Mel apontou para uma garota que passava por elas. Ela falou tão alto que Lia teve certeza que a estudante ouviu — parece que encontrou no lixo. Tenho certeza que no esgoto do meu prédio consigo encontrar uma igual. Não que eu esteja procurando por uma é claro.
Lia sequer olhou para a calça da garota, ela não se importava muito com aquilo. As duas adentraram o saguão da ARE e o mar de alunos se abriu para que elas passassem. Todos as conheciam na Academia de Ensino, e as temiam. Era de conhecimento geral o que Mel havia feito com uma novata no ano anterior, a coitada ainda fugia quando cruzava seu caminho.
O ultimo ano letivo de Lia estava apenas começando, mas seu coração palpitava com ansiedade quando pensava no que sua formatura a reservava. Um mundo de possibilidades a aguardava e ela mal podia esperar.
O alarme que indicava o início da primeira aula soou e as duas se separaram em um corredor. Um peso saiu dos ombros de Lia assim que sua amiga se afastou. Ela sabia que não era assim que uma amiga deveria se sentir na ausência da outra, mas logo as aulas acabassem ela não precisaria ver Mel nunca mais.
A primeira aula de matemática passou como um sopro e logo o relógio marcava 20:15. Assim que o alarme soou novamente todos os alunos se dirigiram em uma fila em direção ao refeitório. Lia foi uma das últimas, não estava com pressa. Essa com certeza era uma das coisas de que ela não sentiria falta na escola; o tempo ocioso que passava esperando nas enormes filas. Ela tirou o celular do bolso para conferir suas redes sociais quando ouviu uma voz que a fez suspirar.
— Vamos saia da frente! Esse é meu lugar — Lia sentiu a mudança no ar quando Mel empurrou a garota que estava atrás dela, quase a derrubando.
— Ei ela estava aí primeiro! — gritou a garota albina que fazia Química com Lia, de algum lugar do fim da fila. A aluna que havia sido empurrada se endireitou e caminhou até o fim da fila fazendo a garota albina balançar a cabeça em sinal de frustração. Lia observava a tudo em silêncio.
— E a defensora dos pobres e oprimidos ataca — Mel sussurrou enquanto tomava o lugar vazio atrás de Lia — Mas com essa cara horrorosa duvido que tenha algo melhor para fazer. Ei você já atualizou seu perfil hoje? — ela apontou para o celular que continuava na mão de Lia. Mel mudava de assunto como mudava de humor.
— Ainda não.
— Você anda extremamente desligada. Aproveita e atualiza agora. Imagina se você esquece. Não é bom pra nenhuma de nós duas ficarmos esquecidas no Boomi — ela pegou o celular também e começou a digitar freneticamente em seguida tirando uma selfie.
— Olha. O que achou? — ela empurrou o aparelho na cara de Lia e o tirou antes que ela pudesse sequer ver a foto com clareza. Mas ela não precisava, sabia que era apenas um relatório detalhado de onde estava, o que usava e o que estava fazendo. As pessoas pagavam para saber daquilo.
— Você sabe que está perfeita — Mel sorriu enquanto deslizava o dedo indicador pela tela.
Alguns minutos depois Lia chegou a bancada de pedra. Uma parede de vidro que começava acima do balcão com um furo em formato de círculo próximo ao rosto de Lia, era a única coisa que separava os alunos dos funcionários.
Uma mulher que parecia ter a idade da mãe de Lia, mas com metade do peso, a entregou um comprimido branco do tamanho da unha do seu polegar. O furo circular ainda permitia que ela passasse um pequeno copo de metal com líquido suficiente para fazer o comprimido descer pela garganta. Lia pegou o copo e usou a água para engolir o comprimido, em seguida abriu a boca colocando a língua para fora, mostrando que não restava nenhum resquício. Alunos que não tomassem o complexo eram punidos severamente. Ela não conseguia imaginar que tipo de idiota preferiria ter sua pele e ossos derretidos a tomar um simples comprimido.
Os alunos costumavam a chamar de pílula da vida. Lia não sabia do que eram feitas, mas sabia que elas dispensavam quase que totalmente a exposição a luz solar. O governo as distribuía gratuitamente a todos, mas apesar de toda a vigilância, algumas pessoas simplesmente se recusavam a tomá-las. Eram chamados de desistentes. Malucos que acreditavam na teoria de que o governo havia inventado toda a história sobre os perigos solares, alguns até se arriscavam a sair durante o horário em que o sol estava no céu. Lia já havia os visto de longe, suas peles tinham diversas queimaduras e eram de uma consistência que parecia pastosa, como se a qualquer momento pudesse se desprender de sua carne e deslizar até o chão.
— Não vejo a hora de dar adeus a essas filas — Mel resmungou atrás dela.
— Na faculdade também tem fila — Mel bufou.
— São muito menores e com certeza mais bem frequentadas — ela torceu o nariz para os estudantes que permaneciam na fila.
— Vamos logo, a próxima aula não vai demorar.
A professora usava um vestido azul escuro, a cor da ARE. Ela havia acabado de iniciar a prova de linguagens. Lia debruçou-se sobre sua estação de trabalho, a tela exibia a primeira página de cinco. A primeira questão era de múltipla escolha, ela demorou apenas alguns segundos para responder. Já para a segunda ela precisou utilizar a caneta touch.
— Que droga! Essa prova é ridícula — Mel resmungou atrás de Lia — amiga você podia me ajudar.
— Shii — Lia tentava se concentrar na prova.
— Liaaa — ela olhou para a professora que estava sentada em sua estação na frente da sala conferindo sua tela, se certificando que ela não havia ouvido sua amiga.
— Mel por favo... — ela começou a sussurrar de volta.
— Ei você! — Lia encarou a professora que falava com ela — Silêncio! — a mulher voltou-se novamente para sua estação e Lia fez algo que se arrependeria profundamente.
— Eu não estava falando — a professora levantou os olhos e a fitou.
— O que disse?
— Eu disse que não estava falando — Lia não saberia explicar porque fez aquilo, mas talvez algo no modo como os outros alunos a olhavam, como se esperassem uma atitude dela, a fez não ficar quieta.
— Está dizendo então que me enganei, ou pior, que estou mentindo? — agora a professora estava de pé.
— Se é assim que pensa — ela não conseguia frear as palavras. A pele clara da professora começava a ficar vermelha.
— Bom, então vamos ver o que eu penso, quando eu cancelar sua prova — Lia paralisou, havia ido longe demais.
— Você não pode fazer isso — sua voz já não tinha mais a mesma potência e presunção. A professora sorriu.
— Ah eu posso — ela se deixou cair novamente em sua cadeira e com alguns cliques a expressão PROVA CANCELADA apareceu na tela da estação de Lia e ela teve certeza que estava em problemas.
— Agora por favor retire-se da minha sala — com o dedo indicador a professora apontou a porta. Lia levantou-se calmamente e se dirigiu a saída. Ela não teve coragem de olhar para a amiga, mas ao sair teve a impressão de ouvir uma risada proveniente dela.***
A sala estava escura quando Lia entrou. Todas as luzes já haviam sido apagadas, fazia algum tempo que as aulas haviam acabado. Ela havia se escondido no banheiro, não fora muito difícil, uma vez que os sanitários da ARE não eram muito frequentados.
Seu coração palpitou com o medo de ser pega. Ela sabia que o que estava fazendo era errado, mas os exames de proeficiência estavam chegando e Lia não podia correr o risco de ser designada para uma profissão de baixa escala. O que com certeza aconteceria, dada a recente mancha em seu histórico até então perfeito. Ela havia esperado muito tempo para sair do buraco onde morava, não deixaria que uma professora estragasse isso.
Lia esgueirou-se pela penumbra da sala até a estação de trabalho da professora. Ela deu três cliques na tela e a mesma se acendeu, o painel inicial pedia uma senha, ela sequer hesitou. Não era segredo nenhum que a nova moda dos alunos da ARE era tentar descobrir a senha das estações dos professores, o que causava uma constante mudança da parte deles. Mas o que os professores não sabiam era que quanto mais complexa a nova senha, mais aguçada a curiosidade dos alunos ficaria, e para a sorte de Lia ela era uma dessas alunas.
Depois de algumas sequências de números e caracteres ela estava dentro do sistema. Agora só precisava desbloquear sua prova e terminar de respondê-la. Lia estava prestes a entrar no sistema de provas quando as luzes se acenderam.
— O que você está...? — era o zelador. Assim que viu o que Lia estava fazendo ele começou a se afastar, de início calmamente, depois começou a andar rápido em direção ao corredor.
— Ei espere! — Lia hesitou entre correr atrás dele e fazer a prova, mas ela sabia que estaria em maus lençóis se o zelador chegasse a diretoria. Ela correu.
Lia se moveu o mais rápido que pode saindo da sala; ela entrou no corredor e ainda via o homem no final. Correu esbaforidamente, mas antes que o alcançasse o zelador chegou a porta da diretoria. Ele olhou para ela uma última vez e entrou. Com a respiração ofegante ela começou a voltar quando uma voz a chamou:
— Lia Cirqueira. Queira comparecer a minha sala por favor — era o diretor. Ela estava ferrada.
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Clube das onze
خيال علميUm crime. Um corpo na biblioteca. Quatro estudantes. Uma investigação. Quando os raios solares se tornam muito prejudiciais a saúde, o ser humano começa a ter uma vida mais ativa durante a noite e se isolar nos horários de sol. É nesse mundo de escu...