Minha casa era aconchegante, tinha um pequeno jardim de miosótis azuis próximo a varanda que combinava perfeitamente com o tom de marfim das paredes. Tinha o piso de madeira, cômodos bem espaçosos e janelas de vidro, enormes janelas de vidro que davam boas-vindas a companhia do sol, e que me permitiam uma boa luminosidade quando eu precisava ler às escuras e não queria acordar os meus pais que dormiam no quarto a frente do meu.
A casa de Dave ficava do outro lado da rua, era feita de madeira, pintada num tom branco-azulado desbotado pelo tempo. Um cercado baixo de mental nas laterais fazia uma pequena separação com as casas vizinhas, uma garagem velha guardava um Ford F-100, creme e vermelho, e na parte superior da casa havia duas janelas, porém apenas uma aparentava estar sempre aberta.
Ali era o quarto de Dave. Sabia disso porque dava para vê-lo caminhar por ele através da janela do meu quarto. Eu o via pelo menos duas vezes ao dia: uma no início da tarde antes do almoço e a outra no fim da noite antes do toque-de-recolher (era como minha mãe chamava a hora de ir dormir — o único momento em que ela parecia de fato uma mãe autoritária).
Naquela noite, no entanto, no entanto, eu ainda não tinha visto Dave, e as janelas de seu quarto estavam pela primeira vez fechadas. Por algum motivo isso me causava certo incomodo. Me sentia diferente ao olhá-lo. Feliz, talvez fosse essa a palavra. Apesar de não entender direito o porquê. No começo pensei ser apenas uma curiosidade momentânea (algo natural para uma criança curiosa como eu); mas considerando que quase nunca me interessava por pessoas, principalmente pessoas "pequenas", era, no mínimo, inquietante.
Por alguma razão eu me sentia diferente ao olhá-lo — mesmo sem entender direito o porquê. No começo eu pensei ser apenas uma curiosidade momentânea (algo natural para uma criança curiosa como eu); mas considerando que quase nunca me interessava por pessoas, principalmente pessoas "pequenas", era algo, no mínimo, inquietante.
Mas, ainda que me sentisse ligeiramente entediado, deixei a estranha frustração de lado. O veria antes de ir dormir. Talvez sim. Talvez não. Ora,mas o que isso importava, eu tinha os meus livros para me manter distraído. Sem contar que minha mãe havia me presenteado com a coleção completa de As crônicas de Nárnia e papai um exemplar capa dura de 20 mil léguas submarinas — o qual estava prestes a finalizar a leitura.
Aqueles, sem dúvidas, tinham sido os melhores presentes de aniversário em todos os anos. Entretanto eu também tinha ganhado presentes sem graça e inúteis como, por exemplo, um taco e uma bola de beisebol da tia Helena e o novo jogo do Donkey Kong do tio Victor. Não fiz questão de utilizá-los, os mantive muito bem guardados dentro do meu baú de brinquedos ao lado do guarda-roupas — minha mãe dizia que era bom termos um baú para guardarmos as coisas velhas, principalmente porque estas coisas velhas um dia poderiam ser doadas para outras crianças, como aquelas que ficavam na creche Rainbow Ride a dois quarteirões da nossa casa, ou para os meus primos mais novos que moravam em cidades distantes (me perguntava se eles não teriam livros velhos para doarem também — essa seria uma troca bastante justa).
Logo não havia razões para me preocupar com Dave, desde que mantivesse minha mente ocupada.
Lia as últimas páginas de 20 mil léguas submarinas, quando comecei a sentir fome. Coloquei o livro sobre o criado-mudo ao lado da minha cama, saí do meu quarto, atravessei o corredor, desci até o penúltimo degrau da escada, preparei o meu melhor salto, me lançando a uma incrível distância até a entrada da cozinha.
Estavam lá minha mãe, encostada contra a pia, e meu pai, sentado à mesa com um jornal aberto cobrindo parte de seu rosto. Meu irmão não estava em casa — ele com toda certeza iria levar uma bronca da mamãe, o toque-de-recolher começava às 21h:00 e o relógio na sala de tevê marcava quase 22h:30.
YOU ARE READING
ANTES DO ETERNO AGORA
RomanceManter-se afastado dos holofotes promove uma frágil e reconfortante segurança. No entanto, sempre chega o momento em que devemos assumir o papel principal de nossa história e emergir a luz de nossa própria jornada; a luta pela autodescoberta se inic...