Pontaria

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Sangue, muito sangue. Manchas para todo lado, espirradas e espalhadas sobre paredes que seguem por um corredor longo e infindável. Mesmo deslocada, um sentido me diz que eu sei exatamente onde estou, uma sensação estranhamente familiar de déjà vu¹, como duas vivências distintas disputando o mesmo corpo: o meu.

Não sinto medo, é quase como se eu já soubesse o porquê de estar aqui, embora não saiba realmente. Subitamente, ouço vozes que parecem vir detrás das paredes. Apenas sussurros, tão baixos que não consigo decifrar o que dizem. Aproximando o ouvido, percebo que parecem falar outra língua. Sigo, arrastando a mão pela superfície, até me bater numa porta. Olho para frente e havia milhares de outras. Abro uma sem hesitar, ela é pesada. Uma névoa sobe. Dentro: apenas uma sala vazia. Mais que vazia parecia preenchida de um vazio denso e inebriante.

Começo a abrir todas as portas à minha frente. À medida que vou andando, abrindo uma por uma desesperadamente, as vozes começam a ficar inquietas e barulhentas. Algumas riem loucamente e outras parecem gritar de agonia, às vezes eu até ouço chamarem meu nome. Mas nenhuma passagem revelava a origem do som.

O mais estranho, é que eu não estava procurando uma saída. Eu queria encontrar a sala certa, mas... qual e por quê? Enquanto tento pensar, as vozes continuam berrando e agora parecem sair de dentro da minha cabeça. Mesmo assim, algo em mim está determinado a continuar.

Abro cinco, seis, sete portas, todas dão em salas vazias. Olho para trás rapidamente e vejo que o corredor parece não ter mudado, como se eu sequer houvesse saído do lugar. Ao me aproximar da seguinte porta, algo chama minha atenção. Abro devagar, fazendo-a chiar. As vozes silenciam.

A sala é como todas as outras, a não ser por um lençol branco, completamente impecável, e em cima dele, uma faca.

Entro em transe ao ver o brilho da faca. Ando até o meio do cômodo, ajoelho sobre o pano e me aproximo da lâmina. O que eu estou fazendo?! Não conheço essa pessoa com a faca na mão, e tenho medo dela. Tento me mexer, desviar, controlar, mas meu corpo não obedece e age por si só.

Estendo a faca deitada e a posiciono sobre o pulso. Não! Pare! Pare! Pare, agora! A faca desliza cautelosamente em minha pele, e um pequeno corte é feito. Deito a palma da mão e deixo cinco gotas de sangue pingar sobre o tecido branco, com um movimento circular. As imagens começam a ficar desfocadas, sinto as veias do meu corpo todo pulsarem...

Acordo em suor frio.

James já está à porta, batendo para se anunciar e mandando-me levantar. Meio desnorteada, mando-o esperar e digo que já tomaria um banho. Arrasto-me para fora da cama num longo bocejo. Eu queria que isso aqui fosse um sonho, mas infelizmente o dia de ontem foi mais que um pesadelo. Tento não pensar em casa nem em nada que me faça chorar logo cedo.

Por enquanto, vamos apenas focar no segundo dia, Luna. É hora de entender como as coisas aqui dentro funcionam. O relógio de cabeceira está marcando 6h50, acho melhor eu programar o despertador daqui em diante.

— Não demore muito. Já estou esperando faz tempo — alarde James por trás da porta, mas não parece mesmo impaciente.

— Não amola, se você tivesse aí há muito tempo já teria entrado pra ver se eu estava viva ou se havia fugido.

— Porque você fugiria? Estaria perdida lá fora. Venha logo, vou te mostrar como é que sai daqui, conheço algumas passagens secretas.

Sorri com sua provocação, contente dele não poder ver.

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Quando Luna saiu do aposento, ela tinha um agradável perfume de sabonete floral. Espantei essa observação da cabeça e fui dando logo as instruções do que iríamos fazer hoje. Avisei que ela poderia ver seu cachorro depois que terminássemos os afazeres, pois sabia que isso a animaria. Conversamos enquanto caminhávamos pelo internato em direção ao campo de treinamento.

Herdeira da Terra e os Arqueiros da LiberdadeOnde histórias criam vida. Descubra agora