Capítulo Dois: Henry

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Quando acordou naquela manhã, Henry sentiu que algo estava diferente. Mas não sabia dizer exatamente o quê. Seguiu sua rotina matinal de exercícios e alimentação, tomou banho, conferiu documentos para a rápida viagem que faria no final da tarde e partiu para o trabalho. O dia transcorreu como sempre acontecia no escritório. Processos, notas, mais e mais documentos e estatutos que deveriam ser conferidos. Tudo perfeitamente normal. Ao longo do dia, aquela sensação de estranheza da manhã simplesmente desapareceu. Almoçou com um cliente importante e foi diretamente do restaurante ao aeroporto. Era o advogado responsável por conferir e fechar um contrato de fusão entre uma multinacional inglesa e uma empresa de médio porte austríaca.

Chegou ao aeroporto, sua secretária já havia realizado o check-in, e seguiu diretamente à área de embarque. Os olhos grudados nos documentos a serem analisados, revendo se não havia nenhuma brecha que pudesse prejudicar seu cliente. Embarcou, colocou o celular em modo avião e ligou o Wi-Fi do celular. Seu voo já havia decolado há, pelo menos, meia hora quando recebeu um e-mail do representante da empresa de Viena informando que houvera um imprevisto e a reunião deveria ser atrasada em uma hora e meia. Sentiu uma leve irritação. Uma hora e meia era um tempo que ele não tinha a perder, mas não havia mais nada a ser feito. Pesquisou o endereço do escritório ao qual deveria se encaminhar na internet e procurou por um bar ou pub no qual pudesse aguardar. Achou o endereço de um café muito vem avaliado. Ponderou por alguns minutos e decidiu que um café era melhor opção que um bar ou pub. Não pretendia beber demais, porém chegar com cheiro de álcool em uma reunião nunca era bem visto. Ainda que durante as reuniões, não raramente, whisky fosse servido com a regularidade de copos d'água.

Fechou o e-mail, pegou os fones de ouvido no fundo de sua maleta, conectou-os ao telefone e ligou sua playlist favorita para quando se sentia estressado. Era um homem de gosto musical refinado e que fora ainda mais apurado ao longo dos anos e da experiência em seu ramo de atuação. Entretanto, ainda preservava a playlist de rock e heavy metal da adolescência. Sempre fora e para sempre seria sua válvula de escape. Enquanto para muitos o som metálico e pesado da guitarra e da bateria eram estressantes, nele apresentavam o efeito contrário. Ainda faltava mais de uma hora e meia de voo, sendo assim, resolveu reclinar-se enquanto ouvia sua playlist favorita e adormeceu.

Henry ainda não havia desembarcado do táxi quando a viu pela primeira vez. Ela parecia distante e apressada, andava ziguezagueando pela calçada, atravessou a rua com destreza e mergulhou em uma pequena porta de vidro. Henry observou o relógio, como previra, estava muito adiantado para a reunião e teria que matar tempo. Observou novamente a porta de vidro enquanto tirava o dinheiro da carteira e fazia o pagamento pela corrida. Ela entrara no mesmo café que ele havia pesquisado no avião. Que coincidência!

Ele abriu a porta do carro e abriu o guarda-chuva que comprou ainda no aeroporto, ao notar que chovia. Saiu elegantemente do carro, segurava sua maleta, ajeitou o sobretudo que cobria seu caro terno e atravessou a rua não muito movimentada. Parou em frente a porta do café e fechou o guarda-chuva, o que fez com que algumas gotas da chuva que parecia aumentar a cada segundo o molhassem um pouco, mesmo debaixo da pequena marquise. Abriu a porta do estabelecimento e a viu parada no balcão, parecia procurar algo. Aproximou-se a passos lentos, e quando chegou perto o suficiente pôde ouvi-la falar algo sobre buscar a carteira, mesmo sob protestos do barista que se oferecia para cobrir a despesa. Ainda com a carteira nas mãos, precipitou-se mais alguns passos à frente e colocou seu cartão platinado em cima do balcão. Para tal teve que debruçar-se por cima daquela mulher que atraíra seu olhar ainda na rua. Sentiu o perfume de seus cabelos e o inspirou levemente. Sentiu um calor percorrer seu corpo e estremeceu. Um estremecimento imperceptível a quem estava em volta, mas que para ele mais pareceu um terremoto. Era como se algo o puxasse magneticamente para ela.

Seu gesto de cavalheirismo não foi bem recebido de imediato e ela virou-se para ele com uma expressão raivosa. No entanto, algo mudou quando os olhares dos dois se cruzaram. Ele podia ver nela o mesmo nível de perplexidade que sentia. Como pode alguém que ele nunca vira na vida exercer tal poder sobre seu corpo? Ele vestiu seu melhor sorriso e a encarou de volta. Observou os detalhes do seu rosto, traços fortes, mas ao mesmo tempo delicados. Grandes olhos castanhos, cílios muito longos, lábios volumosos. O calor que sentiu quando se aproximou dela, agora estava instalado em seu estômago e o deixava nauseado. Aprumou sua postura, aproximou-se mais do balcão e falou ao barista:

- Por favor, cubra o pedido dela e para mim, um Espresso e um croissant. - Sua voz soou muito mais grave e imponente do que pretendia. Mas estava aliviado por não ter soado como um menino de quinze anos, que era como se sentia no momento. Após falar com o barista, ele virou-se para ela e a encarou. - Espero que não se incomode e que me permita fazer esta gentileza. - Desta vez sua voz saiu em um tom mais suave, ainda grave, porém bem mais baixo. Afastou-se um pouco do balcão para dar espaço às demais pessoas que se juntavam na fila para fazer o pedido. Ele olhou para o barista que o preparava com destreza e rapidez. Observou-a mais uma vez. Ela parecia aturdida, um tanto perdida. Abriu e fechou a boca algumas vezes, como se não soubesse o que dizer. Ele quis sorrir, pois no fundo sentia-se da mesma forma. O que estava fazendo, afinal? Se sua namorada soubesse daquilo interpretaria de todas as maneiras erradas possíveis, mesmo que nada estivesse acontecendo, tudo parecia acontecer. Demorou alguns segundos para que ela finalmente lhe dissesse algo.

- Não precisava. Mas obrigada. - Ela foi sucinta. Apenas quatro palavras e, novamente, silêncio. Ela o observava com seus grandes olhos castanhos. Ele sentiu-se despido. E não em um bom sentido. O seu olhar era de escrutínio, como se ela tentasse desvendar sua alma apenas com o olhar. Isso não seria problema, não fosse o fato de ele sentir que ela estava conseguindo. O pedido finalmente ficou pronto. Ele pegou a bandeja e encaminhou-se à uma mesa. Parou no meio do caminho e olhou-a por cima do ombro quando notou que ela continuava parada. Ela pareceu terminar uma ponderação longa se o seguia ou não, até que decidiu fazê-lo. Ele, então, depositou a bandeja em uma mesa mais ao fundo do local, mas perto da janela. A vista da rua e da chuva através da vidraça eram acolhedoras. Ela aproximou-se, ele ajeitou a cadeira para que ela se sentasse e sentou-se em frente a ela. Dessa vez ele também tentava decifrá-la, ler seus maiores segredos. Costumava ser bom nisso. Sua profissão exigia que fizesse uma leitura minuciosa da linguagem corporal alheia. Mas foi como se o mundo parasse, todo o universo parecia em câmera lenta e os poucos minutos que passaram se encarando em total silêncio, no final das contas, pareceram horas. Mais uma vez sentiu o calor percorrer seu corpo e decidiu quebrar o gelo.

- Desculpe mais uma vez pela intromissão. E creio que não me apresentei. Prazer, me chamo Henry. E você? - Eles se encaravam. A beleza dela era inegável e ele sabia disso. Mas tinha algo além disso. Ele não era do tipo que se abalava facilmente com a beleza física. Era acostumado a estar cercado de mulheres lindas, sua namorada era uma delas. Era mais que isso. Era como se alguma força sobrenatural os tivesse colocado no caminho um do outro e agora estavam ambos ali, sem saber o que falar ou como agir. Apenas se encaravam.

Ele se ajeitou na cadeira, tirou o casaco, o dobrou cuidadosamente e o apoiou nas costas de sua cadeira. Desabotoou o paletó e tentou assumir uma postura mais relaxada. Talvez fosse sua constante postura alerta e pronta para atacar que a mantivesse desconfiada. Às vezes ele esquecia de se desarmar, era comum em sua atuação como litigante estar sempre à espreita, observando e assumindo uma postura um pouco mais... agressiva, talvez? Porém, não era aquilo que ele queria passar. Não que ele esperasse nada daquilo, já que tinha uma namorada de longa data com a qual se dava muito bem e tinha uma vida que podia ser considerada como feliz. Apenas queria que aquele momento, aquela atração durasse mais um pouco, não queria que ela levantasse e saísse correndo. A demora dela para responder já começava a incomodar. Estava pronto para voltar a puxar assunto, quando ela finalmente lhe dirigiu suas primeiras palavras.

KismetWhere stories live. Discover now