Capítulo I - Parte IV (Final)

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  Os dedos de Xiho alongavam-se em garras afiadas enquanto ele avançava contra as tropas de reforço. Seu corpo movimentava-se em uma dança instintiva ao passo que seus golpes dilaceravam a carne exposta dos soldados e os arremessava contra as paredes.

  Para impedir o massacre prestes a ocorrer, os paladinos mais velhos uniram-se na linha de frente, erguendo uma barricada com seus escudos de elathur.

  Em comunhão, os sacerdotes recitaram apressadamente os versos sagrados do Deus-Leão, buscando aquele capaz de banir a presença que havia possuído o líder da guarda. Por mais habilidosos que fossem, nenhuma das rezas aparentava causar efeito em Xiho, que, na tentativa de parar o ritual de exorcismo antes que descobrissem os versos adequados, descarregava poderosas investidas contra a barricada, forçando os paladinos a recuarem alguns passos.

Quando a tensão fez-se palpável, Molac, um dos membros do Alto Clero, ergueu as mãos calejadas e trêmulas, interrompendo os paladinos que buscavam deter o avanço do oponente com suas preces. Ele umideceu os lábios e deixou que os olhos enevoados caíssem sobre Xiho.

  A pele alva do senhor tornou-se imediatamente o foco central do homem possuído, que tentava, com ainda mais ímpeto, ultrapassar a barreira de escudos.

  O sacerdote iniciou um cântico, o qual, em seguida, fora aderido pelos outros paladinos, que passaram a recitá-lo em completa submersão. Um zunido tomou conta do ambiente, ferindo os ouvidos de Xiho e obrigando-o a se afastar da barricada. O som aumentava a medida que o coro prosseguia com a reza.

  Durante o cântico, um mar de vozes se ergueram contra a fera, fazendo gotas rubras escorrerem pelos olhos do paladino possuído. Molac clamou mais alguns versos, fazendo o homem cair de joelhos e sua pele dissolver-se em brasas.

  Leaffär assistia a tudo com seu diário em mãos, incapaz de se mover. Ele e os demais paladinos escutavam os uivos de agonia de Xiho, que debatia-se no chão mais uma vez.

  O jovem poderia aproveitar a enorme distração para fugir com o artefato roubado, poderia deixar o líder da guarda sucumbir às preces que o queimariam ou ao demônio que havia lhe possuído. Mas não o fez. Era sua responsabilidade salvar Xiho, ele estava assim por sua causa.

  Leaffär ergueu seu diário, fazendo a luz ao seu redor sumir. Ele cerrou os olhos e inspirou profundamente, visualizando o mar.

  E então cantou.

"Água, ó Água
Que do mar trouxe aqui
Parte do teu tesouro
Aceites nós
Em tuas ondas
Pois até a tua areia
Vale tanto quanto ouro"

  Um tornado de água ergueu-se do chão, ganhando uma enorme potência em apenas alguns segundos. Ele avançou contra Xiho,
diminuindo o calor que o consumia instantâneamente. Em seguida, avançou contra Molac e os demais paladinos, que foram arrastados para longe pela correnteza.

  Leaffär correu até o líder da guarda, que estava beirando à inconsciência, e o agarrou pelas pernas, começando a arrastá-lo pelos corredores das catacumbas. Decepcionado, constatou que o paladino deveria pesar o equivalente a dois "Leaffäres" e meio

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  Leaffär fitava os corredores esbranquiçados enquanto tentava apoiar o corpo de Xiho em uma das colunas, torcendo para que ele ficasse quieto de uma vez. Quando finalmente convenceu-se de que a área estava livre de inimigos e de que o paladino não cairia da coluna, o garoto enfiou a mão em um dos bolsos e retirou uma pena negra.

  O item chacoalhou-se em sua palma e se desmanchou em uma névoa acinzentada, que tornou a se mover, cozendo no ombro esquerdo do garoto uma ave de olhos rosados.

  O animal fitou o paladino, checando seu estado da cabeça aos pés, como se pudesse lê-lo. Depois, encarou Leaffär e abriu as asas, em um gesto de agressividade e negação. O jovem levantou as sobrancelhas e mordiscou o lábio inferior.

  -Eu sei que ele está fora dos planos, mas eu preciso ajudá-lo. Não me pergunte nada, não agora, está bem?

  A contragosto, a ave de rapina alçou vôo, fazendo a camada espectral que a rodeava tornar-se ainda mais intensa. O desenho de um círculo formou-se na parede, por onde o animal atravessou, causando uma pequena explosão de energia e criando uma fenda brilhante. Leaffär agarrou Xiho pela cintura e o puxou com dificuldade para dentro do portal

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  Do outro lado da fenda, Leaffär avistou um imenso campo esverdeado. Uma série de pequenos morros compunha a paisagem adornada pela miúda natureza dos aglomerados de flores selvagens. O sereno caía sobre os dois jovens e acalentava a vegetação. O Sol deslizava pelo horizonte, trazendo seus primeiros raios para manchar de ouro os tetos de Al-Abbas.

  O garoto amaldiçoou a vinda do astro-rei; com a luz da manhã, seria mais fácil para os leoninos encontrá-los e capturá-los. Ele olhou ao redor, localizando-se no espaço e procurando uma alternativa viável de fuga. Inspirou fundo e rumou para o norte, agarrando o paladino pelas pernas outra vez.

  Ao longe, avistou uma pequena chaminé tossindo suas primeiros nuvens de fumaça do dia. Logo abaixo, uma construção simplória de madeira se erguia em uma depressão nascida entre dois morros. O som de copos se chocando e das notas suaves de um banjo preenchiam a mente cansada do fugitivo.

  Leaffär encarou a pintura desbotada que havia sido feita em cima da porta de entrada: um pequenino besouro esverdeado.

  Ele deixou que o corpo de Xiho caísse no chão e correu para dentro da estalagem. Ao avançar contra a porta de carvalho, abriu-a com um empurrão, fazendo um estalo seco soar pela taverna. Apesar do barulho, ninguém pareceu se importar com a aproximação do garoto, que, em passos lentos, caminhou até um dos atendentes.

-O-ooo-oi, e... E-eu... Lá fora...

  O cheiro inebriante das sopas de carne caramelizada tremularam o corpo de Leaffär. Ele tentou se recordar de sua última refeição; havia sido há quantos dias? Já não se lembrava.

O jovem lançou o olhar para a taverneira que estava por detrás do balcão.

  -Eli...

  Antes que pudesse terminar a frase, tudo ficou escuro.

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  O bastão de madeira cutucando suas costelas causou no garoto um desconforto que há tempos não sentia. Ele abriu os olhos, lutando contra as pálpebras, que pareciam infinitamente mais pesadas do que antes.

  -"Vambora", madame, a senhora já dormiu demais!

  O jovem observou a dona do bastão reclamar insistentemente; sua voz era familiar, assim como sua aparência, mas as vestes pareciam ser de outra pessoa.

  Ele manteve o olhar fixo por alguns segundos, tentando desvendar a imagem enquanto se sentava no chão úmido de madeira.

  -Eliza? - Indagou em meia-voz.

  A morena gargalhou, guardando o bastão de madeira em uma espécie de bainha presa à cintura.

  -É bom vê-lo de novo, Leaffär.

  Ela se ajoelhou, ficando próxima o bastante do menino para dar um soco fraco em seu ombro.

  O jovem ruborizou com a demonstração de afeto, por mais intimidadora que fosse, fazia falta nos tempos difíceis.

  -Digo o mesmo, Eli, eu senti a sua falta. Senti sua e do.... Onde ele está?

  Como se estivesse esperando o momento certo para aparecer, um anão surgiu de trás dos caixotes de vinho. Ele ergueu o rosto em direção a Leaffär; seus olhos brilhavam na mesma tonalidade que a barba avermelhada.

  -Garoto da floresta.

  O menino deixou que os lábios se espremessem em um sorriso saudoso.

  -Brerum.

Emon Mes - Entre a Rosa e os EspinhosOnde histórias criam vida. Descubra agora