Gentilmente, a mulher cobriu o bebê em seu colo com um pedaço de pano rasgado. Ela passou a mão sobre o rosto do recém-nascido, aninhou a criança ao peito e puxou o capuz de sua manta, deixando que parte das madeixas prateadas deslizassem para fora. Olhou mais uma vez para a estrada de terra, mesmo à noite ela permanecia nítida com um brilho efêmero adornando seus contornos. Ela sabia que, se pisasse nela, se desafiasse por um único instante os limites da floresta, seria caçada. Mas não importava, tinha que fazer.
Ela avançou pelo caminho e as pernas se esforçaram como jamais haviam feito. Inspirou fundo e o ar entrou queimando em seus pulmões. Por mais que seu coração gritasse que aquela era uma atitude suicida, não parou, não havia tempo para indecisões.
Enquanto tropeçava, lutando para manter o ritmo acelerado, notou a mudança no fluxo da magia. Vindas dos arbustos, sombras animadas se estenderam pelo solo com sorrisos estampados nos rostos curiosos. As criaturas observavam a fuga em deleite enquanto entoavam uma canção antiga.
Os ruídos da corrida foram suprimidos pelos murmúrios e então, de repente, não havia mais brisa. Não havia outro som senão a canção que reverberava por baixo de sua pele, chacoalhando seus ossos e tomando seus sentidos a força. Sua visão vacilou e as sombras pareceram maiores, mais escuras. Sentiu mais medo do que achou ser capaz de suportar. Ela mordeu o lábio inferior até um filete quente escorrer pelo queixo e um formigamento agudo alastrar-se pela área; precisava se manter acordada, não importava o custo.
Em um movimento ágil, a mulher retirou do bolso interior de sua manta uma adaga simples. A lâmina era feita de um metal tão polido que refletia como um espelho e uma única joia pendia presa ao cabo de couro, a cor dourada quase obsoleta por conta da baixa luminosidade. Ela repassou os versos em sua mente e abriu a boca para recitá-los; sentiu gosto de ferro se espalhar pela língua.
"E se viemos da mesma terra
Teu nome nela será lembrado
Pois tuas raízes são as minhas
E quebrarei tuas correntes
Para que em mim possa habitar
Atenda, grandioso, espírito do lar"A tensão no ar diminuiu, o sussurro das sombras passou a sumir sob o peso dos versos, mas não só o deles, algo mais estava ali: Soava logo atrás da mulher, batidas frenéticas na terra, um som abafado como o de alguém correndo com botas de ferro maciço. Ela correu ainda mais depressa, o que duvidara ser possível, e segurou a adaga com tamanha força que os nós dos dedos ficaram esbranquiçados. Sem hesitar, realizou um corte transversal no ar. O fio da arma sibilou e fez um rasgo brilhante. Era aquilo, finalmente, a luz de um novo futuro.
A mulher apertou a criança com mais força e pulou no brilho. A manta escorregou-lhe pelos ombros e foi jogada para trás por um vento forte.
Ela sentiu as costas serem perfuradas por algo gélido e duro, que a puxou para baixo, fazendo-a estremecer e urrar de dor. O branco leitoso do portal foi maculado de vermelho e respingos de sangue recaíram sobre o pano do recém-nascido. Atordoada, ela olhou para trás; a figura de um lobo assistia-a afundar no rasgo etéreo, a pata direita estava coberta de um líquido viscoso.
A criatura sorriu com a bocarra quase humana, nos olhos, porém, o rancor se fazia presente. O clarão o queimava os pelos cinza, salpicados de azul ciano e verde água.
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Emon Mes - Entre a Rosa e os Espinhos
FantasiXiho, um devoto paladino, não esperava que a maior aventura da sua vida fosse ao lado de um adolescente centenário, uma taverneira misteriosa, um anão bêbado e uma divindade com problemas de memória. Postos contra a sua vontade em meio a um conflito...