Capítulo I - Parte II (continuação)

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  A fossa chicoteou sua cauda contra as lâminas dos soldados, produzindo estalos agudos que reverberavam pelo ambiente. Faíscas alaranjadas rajavam o campo de batalha, cada vez mais intensas pelo atrito gerado entre o pelo do animal e o fio das espadas. A felina recuou alguns passos para defender-se de um chute desajustado e retomou a posição no instante em que se sucedeu. Os dois leoninos estavam encurralados. Sem reforços, tornavam-se presas fáceis; era preciso aproveitar o isolamento temporário para derrotá-los antes que entrassem na batalha mais inimigos do que suas garras eram capazes de dilacerar. Perder território não era uma opção.

  Ela estirou as patas e saltou sobre o capacete de um dos soldados, enganchando-se no mármore-metalizado e tombando o inimigo contra a parede, usando o peso respeitável do seu corpo como cursor. O impacto resultou na quebra do capacete do jovem, que caiu desacordado. O outro soldado floreou sua espada em um golpe certeiro contra o pescoço da fossa, decepando-a instantaneamente e liberando uma nuvem de faíscas coloridas que se dissiparam no ar.

  O corpo morto do animal despencou no chão e uma mancha obscura formou-se ao redor do corte limpo, espalhando-se rápida e sorrateiramente pelo resto do cadáver. Um suspiro rançoso manchou o ar limpo das catacumbas.

  Apesar de recém-derrotado, o cheiro pútrido era como o de um animal morto há dias. A decomposição acelerada era um claro sinal de necromancia - o que causou náuseas no soldado. Provavelmente, a fossa havia sido revivida e seu espírito, escravizado.

  Um baque soou no final do corredor, forçando o soldado a desviar o olhar do cadáver.

  Há vários passos de distância, uma figura encapuzado escorria pelas sombras, serpenteando por entre as colunas. Seu corpo variava entre o físico e o etéreo e era difícil distinguir seus contornos com clareza. Ele ergueu-se ao avistar o soldado, expondo os membros finos e espamáticos. Entre os dedos da mão ossuda estava uma adaga.

  O leonino acordado tentou gritar por ajuda, entretanto, nenhum som escapou de seus lábios. No silêncio, seus músculos se contraíram e seu sangue se tornou gelado. Não ousou levantar os olhos, apesar dos passos cada vez mais próximos.

  Leaffär parou em frente ao soldado enquanto escondia a arma em um dos bolsos de sua veste. Ele puxou o capuz e encarou o guarda atordoado pelo feitiço; um aperto tomou conta do seu peito. "Silenciamento" causava ataques horríveis com o intuito de paralisar a vítima. Era um feitiço eficiente, mas nem por isso Leaffär gostava de usá-lo.

  - Foi mal, daqui a pouco você melhora, eu acho.

  O garoto passou pelo leonino evitando movimentos bruscos, pois não seria agradável assustá-lo ainda mais. Ele avançou até o guarda caído e, com os dedos indicador e médio, verificou sua pulsação. Suspirou de alívio ao perceber que ela se mantinha estável; odiaria tê-lo matado. Antes de bater em retirada, Leaffär deitou o paladino desacordado na posição menos desconfortável possível; o soldado já acordaria com uma bela dor de cabeça, não precisava, também, de um torcicolo.

  Novamente, esgueirou-se pelas sombras, avançando pela área recém-limpa de guardas. O encapuzado tateou habilmente as colunas das catacumbas enquanto dançava por entre os corredores em sua forma semi-etérea.

  Ele deteve-se ao passar os dedos sobre o entalhe de um peixe que saltava substancialmente do pilar, diferindo-se dos desenhos tocados até então. Pequenino, o valente peixinho nadava contra a maré violenta que havia sido pintada em redemoinhos azulados ao seu redor.

  - Quem diria que esses safados sabem fazer bons esconderijos? - Apesar da seriedade e da importância do momento, o garoto não pôde segurar um sorriso discreto, que fez covinhas marcarem seu rosto magro.

  Leaffär apoiou a palma de sua mão sobre o peixe e impulsionou-o para trás. Após alguma resistência, o animal cedeu à pressão, causando uma onda de choque que empurrou Leaffär alguns passos.

  Enquanto se afastava do pilar, viu-o vibrar e o chão ao seu redor ranger. Rachaduras causadas pelo tremor se espalharam pelo solo, irradiando um brilho azul incandescente vindo de algum lugar das profundezas. Magia emanava do pilar, alterando a realidade ao seu redor como chuva oxidando a lâmina de uma espada qualquer.

  Os sussurros, sempre tantos no ouvido do garoto, foram trocados pelo som das ondas se quebrando contra as rochas do litoral. O vento úmido bagunçava seus cabelos e misturava o sal marinho com o de suas lágrimas.

  Leaffär lembrou-se daquele tempo, daquele lugar; ao seu redor não estavam mais as catacumbas de Al-Abbas, estava o litoral para o qual ele havia fugido séculos atrás.

  Obrigado a reviver aquele momento, caiu de joelhos. O peso de todo o luto pareceu afundar em suas costas. O cheiro de fumaça ainda infestava suas vestes rasgadas: um suspiro de toda a lástima a que seu povo havia sucumbido.

  Depois da madeira estalando sob o fogo, dos gritos e da súplica, o quebrar das ondas adquirira um som semelhante a um mar de ossos se chocando contra a praia.

Emon Mes - Entre a Rosa e os EspinhosOnde histórias criam vida. Descubra agora