Eliza havia pedido a Brerum que atendesse os clientes, deixando-a a sós com o garoto. Ela sentou-se ao seu lado, satisfeita pelo amigo ainda estar vivo, e entregou-lhe um pouco de caldo.
A rústica tigela balançava nas mãos de Leaffär, que bebia o líquido em uma velocidade assombrosa. Respingos recaíam sobre sua pele esbranquiçada, deixando um rastro no rosto jovial.
Suas roupas estavam ensopadas de água e do sangue do paladino que salvara, fazendo com que manter-se aquecido na adega da taverna fosse uma missão quase impossível. Seus lábios tremiam, mas ele não sabia se estavam assim por conta da fome, do frio ou de uma combinação de ambos.
A mulher esperou alguns segundos, deixando que o silêncio fizesse morada antes de cortá-lo.
-Quem é aquele seu colega?
O garoto cerrou os punhos, machucando-os levemente com suas unhas pontiagudas. Ele desviou os olhos para uma lamparina que brilhava em cima de um dos caixotes da adega, inundando o espaço com luz amarelada.
-Ele é um dos paladinos de Al-Abbas.
Eliza ficou quieta, brincando com a barra de seu vestido, e, por um tempo, se manteve assim. Secretamente, Leaffär estava aliviado por não ter sido mais interrogado, ele ainda não se sentia pronto para isso.
Após alguns minutos de quietude total, a mulher encarou o menino e deu uma risada. Ele buscava se aquecer abraçando os joelhos, como uma criança perdida.
-Vamos, você precisa de um banho quente.
O garoto levantou e, antes de sair da adega, tateou os bolsos internos do casaco, certificando-se de que ainda estava com o seu diário.
Eliza o guiou até um corredor estreito com uma única porta de carvalho no final. Pediu que ele ficasse à vontade, teria tempo para pensar e se banhar. Ela passou a mão pelos cabelos, colocando alguns fios atrás das orelhas.
-Em cima do armário há roupas limpas, acho que servirão.
Leaffär agradeceu e caminhou até a porta, mas, antes que pudesse entrar, foi interceptado por Eliza.
-Ei, garoto da floresta, o paladino disse que sobreviveu graças ao "menino magricela".
Ela levou uma das mãos ao peito esquerdo e, por alguns instantes, seu perfume pareceu ficar mais forte.
-Eu estou orgulhosa de você.
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Leaffär pegou o diário, sentou-se na borda da banheira e começou a revirar as páginas em branco. O garoto folheou o livro, incrédulo com a falta de anotações, até encontrar a figura de um corvo negro pintado acima de uma pequena nota.
A tinta ainda estava úmida no papel.
"O arauto da noite já repousou sobre os galhos da grande árvore. Posso ouvir, toda vez, o uivo do vento precedendo o seu bater de asas. Eu o sinto, percebo seus sinais. Sua chegada enegrece o céu: tudo fica escuro, menos os seus olhos, eles continuam perfurando a noite intrépida. As imagens estão ficando mais nítidas, eu as desenho para não me esquecer dos detalhes. Por que ele me mostra os ratos? Não há como fugir do arauto; quando durmo, posso vê-lo nos meus sonhos, e, acordado, posso senti-lo próximo.
Toda noite, sei que ele vai estar lá, no galho da grande árvore. Ele espera por mim."
Leaffär balançava as pernas apressadamente enquanto fitava o seu reflexo na banheira e pensava sobre as palavras lidas. O vapor atingia a sua face em um afago delicado e convidativo.
Ele jogou o diário em um canto e adentrou a água quente, deixando que o mormaço lhe envolvesse. Os cabelos castanhos perderam a cor sob as pequenas ondas azuladas, embaladas pelo corpo do garoto.
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Brerum alçava os braços, tentando, insistentemente, alcançar a garrafa de vinho no topo da prateleira. Na ponta dos pés, o equilíbrio do anão só não era mais frágil que o seu ego.
-Pela última vez, Brerum, eu pego essa garrafa pra você! - Bradou Eliza.
O anão rosnou quando a jovem fez um gesto sugerindo encostar no objeto.
-Eu, um nobre anão guerreiro, senhor das pedras e do martelo, o artesão mais eficiente de todo o meu povo, exímio usuário do espírito da terra... - Fez uma pausa dramática, aguardando que os olhares de todos recaissem em sobre ele - Acha mesmo que não posso pegar aquela garrafa com minhas próprias mãos!?
-Acho.
Brerum bufou de irritação. Ele caminhou em passadas largas até o seu martelo, que estava recostado em uma das paredes, e o ergueu, fazendo o chão ao seu redor tremer. Seu rosto dissolveu-se em rugas raivosas ao passo que ele pulou contra a prateleira, pronto para desferir um golpe poderoso contra o móvel, levando-o abaixo junto da garrafa. Eliza, instintivamente, ergueu seu bastão e, em um contra-golpe, bloqueou o ataque do anão, forçando-o a recuar.
Eles se entre-olharam e o martelo do anão acendeu em magma, fazendo-o ganhar um aspecto avermelhado.
-Quer um banquinho pra me alcançar, Brerum?
-Cuidado com o veneno, garota...
Os clientes assistiam a cena ansiosos, fazendo suas apostas sobre quem seria o vencedor dessa vez. No último duelo, Eliza saíra vitoriosa, seria agora a chance de Brerum se vingar?
O anão avançou, buscando acertar as costelas da sua oponente com seu martelo. A mulher rebateu o ataque, fazendo a madeira de sua arma envergar-se contra o metal aquecido.
Uma única gota de suor escorreu pela pele bronzeada quando a jovem, em uma movimentação inesperada, jogou-se em cima dele, encaixando um soco por baixo do queixo barbudo de Brerum.
Ele tombou para trás, atordoado, dando abertura para que ela encerrasse o combate com uma poderosa rasteira. O anão caiu no chão, sem ar.
-Era melhor ter aceitado minha ajuda, "Bre".
Brerum riu enquanto puxava o martelo para perto de si e erguia-se em um salto. A arma cintilou, preenchendo os olhos do homem de raiva.
-Eu exijo revanche!
Eliza gargalhou.
-Eu acei...
Luz esverdeada invadiu o ambiente, sobrepondo-se às demais. Eliza abaixou-se ao ouvir um farfalhar de folhas se unir aos gritos assustados de seus companheiros.
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Emon Mes - Entre a Rosa e os Espinhos
ФэнтезиXiho, um devoto paladino, não esperava que a maior aventura da sua vida fosse ao lado de um adolescente centenário, uma taverneira misteriosa, um anão bêbado e uma divindade com problemas de memória. Postos contra a sua vontade em meio a um conflito...