Paulatino

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Nos dias que se arrastaram, Sorte dividiu-se entre chorar, dormir e receber visitas. Internamente tentava se reconstruir aos poucos, mas as lembranças dos toques e das palavras persistiam. Foram tão poucos momentos passados juntos, ainda assim se sentia injustiçada.

Às vezes chorava olhando para os presentes que ganhara de Azarado, outras mirando o espelho e vendo o vazio da tristeza nos próprios olhos. Não queria viver, mas não podia morrer. Sempre era pior quando ficava sozinha, porém esses momentos não eram tão recorrentes. Adália ou Matilde passavam a maior parte do tempo no quarto, mesmo que em silêncio, fazendo algum bordado enquanto Sorte mergulhava nas leituras de seus livros.

A notícia do casamento de Ofélia e Azarado chegou na casa dos Olivares através de um convite enviado pela senhora Weirtz. O mexerico morreu depois de alguns instantes, quando Adália jogou o papel no fogo do fogão à lenha. Sorte fingiu ignorar, mas sentiu o peito doer enquanto se lembrava do quanto ela e a senhorita Weirtz foram amigas.

A situação se invertera de uma maneira bizarra e sua nova amiga era Clementine, que sempre a visitava junto ao irmão.

Volta e meia levavam comidas para Sorte e a família. Tomavam chá da tarde juntas e conversavam sobre assuntos variados enquanto Marcel fazia comentários espirituosos que arrancavam gargalhadas sinceras de Sorte.

Era em marcha lenta, mas ela se reconstruía aos poucos. Tinha apoio da família e dos amigos, não precisava de mais que isso. Mesmo que não tivesse vontade de continuar, dava seu melhor, um dia de cada vez. Aos poucos entendeu que os outros percebiam e compreendiam a dor de seu coração, e que cada um que ali estava estendia a mão para ajudá-la levantar. Cada um dava o melhor de si para que ela se recuperasse da queda naquele abismo terrível.

Aos poucos começou a ver uma luz pálida na escuridão de dor que a cercava.

Então se lançou nos preparativos para a viagem com os Desfleurs. Seria bom mudar de ares e ver suas terras de perto. O casarão da outra fazenda era maior e tinha um casal de senhores vindos direto da África que atuavam como caseiros. Lá seria um ótimo lugar para Clementine, uma vez que a senhora e o senhor Silva eram experientes e não fariam julgamentos.

A francesa e o irmão poderiam permanecer pelo tempo que quisessem e ninguém os incomodaria.

Sorte alguns meses antes encomendara uma carruagem para si e ela finalmente chegara. Era maior e mais segura que a de Pedro que surtara ao imaginá-la em uma viagem sem ele para cuidar de sua segurança. A moça garantiu que ficaria bem, pois levaria Tomaz consigo.

Certo dia Adália perguntou da bota. Sorte contou a verdade e encerraram o assunto. Que o passado ficasse para trás de uma vez por todas.

Diferente de Sorte que se recuperava a cada dia, Azarado definhava. A mãe, preocupada, insistia para que ele se alimentasse e o homem fazia, mas não adiantava. A tristeza sugava toda sua vitalidade. Aos poucos parou de ficar no quarto se entregou ao trabalho, de corpo e alma. O pai estava velho e era melhor que ajudasse, sendo marquês ou não.

Azarado chorava toda noite deitado na cama. E muitos dias deitado no dorso de Elegante. Chorava nos pastos onde ninguém poderia vê-lo ou ouvi-lo. Às vezes deitava-se no capim e olhava sem propósito para a imensidão do céu. As roupas um pouco largas no corpo, barba grande, olhos fundos e com as bordas enegrecidas pela solidão da pior prisão do mundo: A consciência pesada.

Era o pior castigo, principalmente quando aliado às lembranças do rosto de Sorte. A transição de imagens que variavam entre as expressões de alegria e o momento de decepção fazia com que a mente do homem divagasse em um mar tortuoso que torturava a cada segundo. Às vezes fechava os olhos e esticava as mãos para frente como se pudesse tocar a face dela, chegava a mexer os dedos entregando-se ao delírio de que ela estava ali e que sorria sob o toque de suas carícias.

Poucas eram as vezes que Azarado pensava no vindouro casamento com a bela Ofélia. Seria obrigado a salvá-la da desonra, já que a culpa era dele, e dele somente. Pelo menos assim julgava.

Foi estranho encontrá-la pela casa nos dias antes de ela retornar para a fazenda dos pais. Ambos se encaravam mudos, ela com olhos cheios de culpa e ele com raiva. Raiva de si. A maior parte das vezes desviava o olhar para outro canto que não fosse o rosto da moça, enquanto se perguntava como poderia viver com ela. Como? Como a tocaria novamente?

Azarado julgou que não sabia como fazê-lo. Não saberia tocar o corpo de Ofélia, sentia repulsa simplesmente por imaginar, imagina tocá-la. A certa altura Azarado teve uma ideia. Não precisava ter relações carnais com a moça. Depois de um ou dois meses de casados a enviaria para a corte ou para a Europa. A jovem podia arrumar amantes, ele não impediria. Talvez tivesse um filho deles, se quisesse ser mãe. Ele a visitaria periodicamente para manter a fachada. Era simples. Ficaria cuidando dos negócios do pai, era a desculpa perfeita.

Já Ofélia, sentia-se uma boneca de pano sendo carregada para todos os lados. A mãe, entusiasmada, sempre falava por ela. A mocinha encomendou o enxoval, o vestido de noiva, os docinhos e as comidas para a recepção que seria na fazenda dos Weirtz por insistência do marquês. O pai da noiva queria dar uma ostentosa festa na casa dos marqueses, mas estes disseram que não seria ideal porque o outro noivado ocorrera lá e havia pouco tempo.

Weirtz tentou argumentar dizendo que isso não seria um problema, mas o marquês o colocara em seu lugar ao dizer que era impedimento para ele, por ser um homem de honra e não aceitaria lançar à lama o que restara da honra da jovem Olivares. Pois bem, se o pai de Ofélia quisesse o casamento seria daquela maneira e ponto.

Ofélia se analisava nua no espelho certo dia. A beleza murchava aos poucos e a única coisa que a fazia ter energia era a esperança de fugir dos pais o mais rápido possível. Via que Azarado definhava aos paulatinamente. Se de um lado da balança estava a felicidade dele, do outro estavam ela e Mirtes.

Às vezes chorava sozinha pensando na amizade que perdera. Lembrava-se dos momentos com Sorte e se sentia uma víbora. Sentava na cama, abraçava os joelhos e chorava, então ouvia a família.

Todos os dias de manhã o pai aparecia no quarto da moça para cobrar que ela não estragasse tudo. Que fosse direita. Usasse da educação cara. Não importava o fato de Francisco ter pedido o título de volta, o pai dizia. O velho logo morreria e com algumas trocas de favores o esposo de Ofélia teria o título novamente. Um dia ela ousara dizer que não se casaria e o pai a surrou nas pernas com o chicote de bater no cavalo.

A mãe observava impassível, como sempre fizera. Não adiantava implorar por ajuda. E Mirtes chorava. A pobre criança ficava desesperada e quando da ocasião da agressão quis abraçar Ofélia, o pai não deixara.

Já às vésperas do casamento, o senhor Weirtz a avisou que a mataria se ela estragasse a chance de ouro de ascender ao maior nível de todos. Não era em sentido figurado, o homem colocou uma arma na cabeça de Ofélia e a ameaçou.

De olhos arregalados ela assistiu a boca do pai de mexendo devagar enquanto pronunciava as palavras com bastante clareza. "Filhas só servem para casar e dar despesas, Ofélia. Se não conseguir cumprir sua única incumbência, não terei motivos para mantê-la com vida.", foi o que ele disse.

Ofélia perdeu o ar diante da ameaça e já calculava que depois dela seria a vez da irmã.

Olhando-se no espelho a moça se perguntava do que adiantava o corpo bem feito ou as boas intenções se não podia se livrar de destinos cruéis. Mais de uma vez pensara em fugir com Mirtes, mas não tinha dinheiro. Se pedisse ajuda a alguém contariam para o pai dela e seria castigada. Assassinada. E Mirtes teria um destino tão terrível quanto o seu.

Não, não poderia contar a verdade para ninguém. Entraria naquele casamento sem expectativas de amor que não fosse o da irmã. Sim, levaria ela consigo e terminaria de criá-la. Daria oportunidades para Mirtes e ela poderia ser feliz um dia. A família Almeida era boa, a irmã cresceria em um ambiente saudável. A marquesa poderia ensinar coisas de mulher madura que Ofélia ainda não compreendia. Faltava pouco tempo até sair de seu terrível castigo para entrar na prisão dourada do casamento com Azarado. De certa forma estaria livre, apesar de condenada.

Às vésperas o casamento Azarado recebeu na fazenda a carruagem nova que pedira para fazer. Adaptada às necessidades de Sorte.

Ele entrou dentro dela, sentou no banco largo acolchoado e chorou até dormir ali.

Sorte e o Marquês (Donas do Império - Livro 1) [CONCLUÍDO]Onde histórias criam vida. Descubra agora