Suas asas são cortadas, mas ainda assim ela é culpada por não saber como voar.
Simone de BeauvoirAs nuvens cinzas que cobriam o céu e se perdiam nas imponentes montanhas do oeste, pareciam infinitas e faziam com que, no coração de Juliet Dawson, a sensação fosse de que aquela relativamente ampla propriedade nos arredores de Quator não passasse de uma apertada cela de uma masmorra qualquer.
Apesar da pouca idade, jamais havia experimentado a liberdade plena, exceto na primeira infância quando, nos longos períodos de ausência de seu amado, a doce Margot Dawson ousava desobedecer às ordens de Christopher Hanway de Redvers e lhe permitia correr e sentir seus pés tocando a terra por entre as gigantes árvores que ocultavam sua casa do mundo.
Lord Christopher nunca havia necessitado nenhuma desculpa para manter Juliet e Margot incógnitas do mundo assistidas apenas por alguns poucos e discretos criados. E muito menos lhes dado muitas explicações para isso. Entretanto, a prematura morte de Margot, finalmente lhe deu a justificativa perfeita para que sua filha tomasse conhecimento de que seu destino seria marcado pela completa reclusão.
Haviam se passado quinze dias do fatídico dia em que Juliet viu o discreto caixão de sua mãe ser coberto pela terra no cemitério de que a propriedade dispunha. As palavras do padre Richard despediram uma mulher que, assim como quase todas as suas contemporâneas, havia passado despercebida pela vida. Como havia passado sua mãe e como também, seguramente, passaria Juliet, ou ao menos, assim ela pensava.
Juliet esperava de pé, do lado de fora da biblioteca de sua casa onde Christopher costumava tomar todas as decisões importantes sobre aquele lugar no curto espaço de tempo que ele passava em Quator. A morte da mulher com quem, aparentemente, havia compartilhado a vida não havia alterado, nem por um segundo, nenhum dos planos que ele parecia já ter estabelecido para todos à sua volta.
Sentia um incômodo pelo espartilho que não estava bem encaixado, mas não ousava se mover até que seu pai lhe desse ordem para entrar e ouvir suas determinações. Primeiramente Caleb, o mais antigo e fiel criado de sua casa, saiu da reunião com seu patrão, baixando os olhos ao passar por Juliet.
Ela sabia o que sua atitude significava. Provavelmente o homem havia pedido um detalhado relatório de cada passo da jovem no período em que ele passara fora de casa. Queria zelar para que ela cumprisse o luto como tinha que ser e evitar falatórios maledicentes. Naquele momento essa era a justificativa para que ela não saísse de casa. Em outros, ele não precisava dar nenhuma, seu costume era dar apenas ordens que ele exigia que fossem cumpridas.
Christopher sempre havia sido muito cuidadoso da reputação de sua família. Não aceitava que seu nome, o de Margot e, muito menos, o de Juliet aparecessem em falatórios por onde quer que fossem. Não que fossem a muitos lugares, na verdade. Juliet chegara a se questionar se alguém do mundo de Christopher, ou de qualquer outro, conheceria sua existência. Se questionava também se o próprio Christopher se dava conta de que era pai de alguém, a verdade é que nunca fora notada.
Depois da saída de Caleb, uma pequena fresta da porta entreaberta mostrou Christopher aparentemente alterado discutindo com um de seus amigos de negócios sobre um tema que ela tentava, de toda maneira, decifrar. Mas, apesar de não ouvi-los bem, sabia perfeitamente que só podia se tratar do único tema que ele fazia questão que ela não ouvisse: o destino dela. Em um arroubo de alteração Christopher se mostrou como poucas vezes se havia deixado ver:
— Entenda que eu não posso simplesmente agir como se ela nunca tivesse nascido!
— Entenda-me você, Christopher! Você só se torna seu herdeiro se for o esposo de Francis de Courtenay. O velho está nas últimas e jamais aceitará para sua filha um marido que não seja um exemplo de retidão e religiosidade. Enquanto esse velho viver, ninguém pode saber dessa bastarda! — Encerrou ele.
Juliet não havia se dado conta do momento em que ignorou a distância aceitável pela etiqueta e se aproximou da porta do escritório sentindo um imenso horror ao tomar consciência de que a intenção de seu pai era, nada menos, do que se livrar dela. Por que não corria? Poderia ir à cidade, falar com Mick, escolher a vida que queria viver, o jovem parecia estar verdadeiramente apaixonado por ela. Mas, ela não fez nada disso. Voltou a se afastar engolindo um soluço que regressou a lhe assaltar.
Havia sucumbido às lágrimas muitas vezes nos últimos dias. A dor da perda de sua mãe ainda dilacerava seu coração e ela finalmente entendia que não havia nascido para sonhar. Recordava haver lido, em alguns romances e notas em jornais que seu pai às vezes deixava pela casa, sobre as temporadas de Londres em que senhoritas da sociedade debutavam em bailes. Sonhara que, um dia, seu pai lhe diria que ela estava pronta para desabrochar para a vida. Um sonho que jamais se faria realidade. Aquele não era o destino imaginado para ela por Christopher.
— Lady Juliet. — Chamou o homem num tom mais forte. — Sir Christopher a espera.
Juliet respirou fundo e se preparou para encarar sua sentença. Ainda teve tempo de pensar em porquê o homem a chamara de lady, jamais havia de fato ostentando esse título que, em sua ilusão, acreditava pertencer a mulheres que tinham o direito de escolher seu próprio destino. Seu coração batia forte e um incontrolável tremor chegou às suas mãos que ela se desesperou por sentir sem aquelas luvas.
As pernas recusavam-se a lhe obedecer e seus olhos lhe pediam em desespero para olhar nos de seu pai e tentar encontrar ali algum vestígio daquele amor que um dia acreditou que ele sentia por ela. Contudo, havia aprendido em suas aulas de etiqueta que não se olha nos olhos de um homem e, muito menos, um que tenha autoridade sobre si.
— Então você me desobedeceu e foi à cidade? — Questionou o homem passando a mão por seus cabelos castanhos.
— Sentia-me sufocada. Ainda sofro muito por mamãe. — Explicou ela naquele tom subserviente.
— A questão é que eu soube que você anda de conversa com um rapaz e isso acabou, Juliet. O mais importante é que você tenha consciência que um luto jamais deve ser vivido fora do aconchego do lar. E uma lady nunca desobedece a seu senhor.
— Perdoe-me, pa... — Recordou mais uma das tantas ordens de Christopher. — vossa graça.
— Isso já não importa. Empaque todas tuas coisas mais importantes que caibam em um único baú. Você não deve, de nenhuma maneira, ter demasiada bagagem consigo, não vai precisar.
— Para onde eu vou, meu pai? — Esqueceu-se, por um segundo, que aquele substantivo estava proibido naquela casa. Como Margot também tivera sempre proibido dizer a palavra marido. Ele de fato nunca havia sido Marido de Margot, mas, com certeza era o pai de Juliet. Por mais que isso não lhe importasse.
— Você viaja comigo amanhã até Londres. Você já não viverá nesta casa. — A frieza de Christopher chegou a iludir Juliet.
Por um segundo seu coração quis acreditar que ele a levaria consigo para que vivessem como uma família agora que ela já não tinha sua mãe que havia sido sua professora, dama de companhia e família. Tudo em uma única figura que agora lhe faltava. Entretanto, Christopher pareceu adivinhar que Juliet pudesse mal interpretar suas palavras e quis se explicar como raramente costumava fazer.
— No lugar onde você vai viver, religiosos cumprem uma bonita missão de manter longe do pecado jovens senhoritas que suas famílias queiram proteger.
— Vou me tornar freira? — Indagou Juliet sentindo seus olhos cor de mel dilatarem-se pelo susto.
— Não! — Negou Christopher com um sorriso. — Seu destino é o asilo Candlestick, onde senhoritas como você são educadas para viver uma vida de trabalho e dedicação a Deus. Você vai se tornar uma madalena penitente.
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Marcadas pelo Pecado - DEGUSTAÇÃO
Historical FictionROMANCE DE ÉPOCA LÉSBICO. E se a lady não se encantasse pelo marquês e, sim por uma bela plebeia de cabelos loiros e olhos azuis que vai desordenar sua vida? Inglaterra, 1872. No auge da Era Vitoriana, vários países da Europa mantém casas de trabal...