Dia 2 - Capítulo 6

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— Acho que a melhor opção é matar os líderes dos países inimigos — Saldo, o filho mais velho arrematou resoluto — a opção mais eficiente, ao menos.

— Você nem sabe quem são os países inimigos, Saldo! — Marrita riu, debochando do irmão.

— E quem sabe!? — A voz grave e alta de Saldo ecoou pela barulhenta sala de jantar. Ele e a irmã deram de ombros, haviam chegado a um impasse definitivo.

A família incomum estava toda reunida na mesa, sob uma massa disforme de burburinho, risos e o som de talheres. Amélia, a avó, sentava à cabeceira. A mesa estava abarrotada, afinal para alimentar tantas bocas, eram necessárias quantidades colossais de comida. Alguns filhos falavam sobre guerra, suas irmãs cochichavam sobre as roupas novas da vizinha e uma das filhas ralhava com todos e ordenava que se apressassem pois estavam atrasadíssimos. 

O androide da casa se aproximou para colocar mais chá em sua xícara de porcelana antiga:

— Não, obrigada. — Tocou em seu braço, recusando com um sorriso doce. Suas vizinhas sempre ficavam escandalizadas ao chegar em sua casa e lhe encontrar na cozinha preparando comida ao lado do androide. Um absurdo!, diziam bestificadas. Não entendo você, Amélia! Comentavam, balançando a cabeça em desaprovação.

Pessoal... — Miranda, a inteligência artificial da casa tentava penetrar na atmosfera barulhenta e displicente da família, para alertar mais uma vez que eles precisavam se apressar se fossem pegar o uirapuru.

Amélia levantou-se silenciosamente e saiu da sala, ainda sob as súplicas por atenção de Miranda. A cabeça da avô estava recheada de memórias desde que compraram as passagens para Brasília. Todo ano era assim nessa época: ela ficava nostálgica e distante, todos da família já sabiam.

Nascera em Brasília, a grande e imponente capital. Na época, inegavelmente uma das mais belas do mundo. Voltar para sua cidade natal sempre lhe trazia lembranças, desde as mais doces até as mais terríveis.

Em seu passo lento, Amélia foi até seu quarto, quase em transe. Abriu uma das janelas e inclinou metade do corpo para fora, sentindo a brisa fresca e programada da manhã acariciar seus cabelos prateados. Observou com os lábios franzidos a cidade, sobre a superfície não havia prédio algum com mais de três pavimentos. Lembrou com amargor dos prédios monumentais que se erguiam sobre o chão, das praças e lojas borbulhando de rostos eufóricos.

— Pessoal! — A voz já aborrecida de Miranda, que vinha da sala, invadia o quarto.

Amélia baixou o olhar para o piso reluzente que rodeava todas as casas e revestia o chão da cidade. Pensou no que acontecia abaixo dele. Talvez a vida ali parecesse mais com sua antiga e intensa vida... Sorriu, apenas aquele pensamento já era suficiente para liberar adrenalina e excitação em seu corpo. Imaginava a cara que as vizinhas fariam se dissesse a elas que planejava descer a base. Sorriu novamente, divertindo-se com ideia: seria uma comoção, com certeza alguma delas até desmaiaria.

— Ahh! — O grito histérico de Miranda a trouxe de volta para a casa. Voltou para a sala de janta afim de ver o que estava acontecendo.

— Vocês estão atrasados, seus irresponsáveis! — Miranda perdera a paciência e ralhava zangadamente com a família. — Vocês estão muito atrasados.

Todos estavam em silêncio, surpresos com os modos da inteligência artificial, que costumava ser calma e paciente. Uma das filhas, com a boca cheia estava prestes a dizer algo quando ela decretou prontamente:

— Arrumem suas malas. — Uma das irmãs tentou dizer um 'mas', sendo cortada imediatamente: — Agora! Tem um carro lá fora, esperando por vocês. O uirapuru sai em doze minutos. Vamos, vamos, rápido! — Atalhou.

Doze minutos!? Pensaram, simultaneamente e houve uma movimentação geral na mesa: começaram a esbarrar uns nos outros enquanto se dirigiam aos quartos, alguns colocavam nacos de comida na boca antes de se retirar e outros corriam para suas malas, que repousavam displicentemente abertas e vazias sobre as camas, e jogavam a primeira peça de roupa que vissem pela frente.

Amélia sorriu. Estavam indo para Brasília.


* * *


Com um toque no aparelho chato em suas mãos, Ed ligou as conexões neurais que tinha com Idac, sua inteligência artificial pessoal. Indicou com os olhos a família a seu lado e em um instante Idac enviava dúzias de imagens, vídeos e conversas para a mente de Ed.

As imagens e textos desfilavam a sua frente, dividindo espaço com as fileiras de poltronas a sua frente. Fechou os olhos para visualizar melhor.

Uma família e tanto, treze membros: três irmãs e um irmão mais velho... a voz agridoce, meio rouca de Idac ecoava em sua cabeça, paralelamente a sua própria voz interna, que também pensava naquele grupo peculiar de pessoas.

E você notou a avô!? Suas vozes indagaram em uma curiosa coincidência e ambos riram. Cuidado com essa vovô..., Idac segredou, ela é da superfície mas tem a carinha de gente da base. Perigosa...

Ed franziu os lábios, anuindo. Definitivamente, alguma coisa na matriarca parecia estranha, como se ela dividisse duas personalidades, ou melhor, como se uma personalidade escondesse a outra. Uma gravação curiosa chamou a atenção de Ed e imediatamente Idac, cuja mente artificial estava intimamente ligada a mente de seu criador, focalizou e ampliou a gravação. Era um vídeo extraído da inteligência artificial da casa da família: a família corria para seus quartos e armários, arrumando desengonçadamente suas malas de última hora.

Eles arrumaram as malas. Pensaram paralelamente. Onde estava o androide deles nessa hora!? O androide deve ser como um parente próximo, Idac pontuou, arqueando as sobrancelhas de Ed, sem disfarçar a própria surpresa. Avançou por várias câmeras, até encontrar o androide encostado em uma das janelas da casa, observando a família com os ares bobos e infantis que os androides tem. É, ele não é um empregado ou uma ferramenta. Afirmaram, assentindo.

A gravação da família desleixada avançava, quando Idac exclamou, sobrepondo sua voz cheia de perplexidade e excitação ao som da gravação. Eles tem uma filha!

Ed franziu as sobrancelhas incrédulo. Uma filha? Na República!? Idac anuiu, fazendo os lábios de Ed sorrirem. O que mais você descobriu, Idac? Qual o nome dela? Qual a turma? Ela é uma das favoritas? Ele tinha dezenas de perguntas, mas Idac suspirou tristemente. Sabia apenas isso: eles tinham uma filha, nada mais. Descobrira por um perigoso deslize de uma das filhas da avó ( talvez fosse ela a mãe? ), além disso, não havia sequer a mais remota ligação rastreável entre a família e a República. Obsídia, a arrogante e odiosa inteligência artificial da República, era extremamente meticulosa com a segurança dos filhos, e com seus milhares de metros cúbicos de salas cheias de processadores, podia vasculhar qualquer coisa e qualquer pessoa tanto quanto quisesse. Idac estreitou os olhos, irritado por pensar em Obsídia.

Rancor de computador? Ed riu, ciente dos pensamentos do amigo. Ela é uma maldita... Idac rosnou, cerrando os punhos de Ed, e tentou desviar do assunto logo em seguida: se alguma delas é a mãe, talvez algum dos homens seja o pai...

Um riso alto e próximo chamou a atenção de Ed, fazendo-o abrir os olhos. Nas poltronas da frente, duas moças riam e se acotovelavam em meio a sussurros excitados. Estavam de joelhos nos assentos, viradas em sua direção. Elas estavam olhando para você. Idac cochichou depois de checar rapidamente as imagens das duas nas câmeras do uirapuru. Ambas eram da família. Ao perceber que ele abrira os olhos e as observava, a mais alta deu um cutucão na outra, que corou levemente e virou para o irmão na poltrona ao lado, em uma péssima tentativa de disfarçar:

— Onde estamos agora, Saldo? — Inquiriu, em um falso tom curioso.

— Sei lá — o irmão deu de ombros com desinteresse — sobre a Bahia, acho.

Ed fechou os olhos novamente. Sorria. Tinha muito o que fazer com aquela família.



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