mesmo que cinquenta anos se passassem, ele ainda reconheceria aquele par de mary janes. dizer que estavam velhas era eufemismo - uma crosta de barro os cobria e as fivelas estavam tão enferrujadas que tilintavam a cada passo. ele nem precisou entrar casa para ver se ela estava lá - os sapatos o cumprimentaram à porta de casa e ele nunca se sentiu tão nervoso, nunca suas mãos suaram tanto e nunca teve parar para amarrar o cadarço do all star azul tantas vezes no caminho. ele tremia e o laço saía frouxo.
olá, disse baixinho. aquelas sandálias os acompanharam por tanto tempo que eram quase uma extensão deles mesmos. quando lembrava dela, era sempre com mary janes de couro da cor de seu cabelo castanho, polidas tão bem que brilhavam na mesma intensidade dos olhos dela quando via um livro novo. se conheceram na biblioteca e antes de vê-la, ouviu um rastejar na estante de literatura estrangeira. a mocinha recitava passagens para si e ninguém mais. encantaram-se; ele leu todos os romances e não houve um personagem apaixonado sequer com quem não se identificasse. ela lhe deixou um bilhete em Jane Eyre; ele devolveu em Helena. ela se declarou em páginas de Romeu e Julieta e ele respondeu na borda d'O Grande Gatsby com juras de amor que fariam os românticos chorar de emoção.
amaram-se desenfreadamente. os sapatos foram desbotando enquanto as páginas eram passadas, porque o tempo é um leitor voraz e logo chegaram os realistas exigindo término. a despedida aconteceu nas bordas de Anna Karenina, e todas essas frases um dia iam servir de inspiração para muitos amantes dos livros. uns usavam coturno, outros usavam sandálias; uns preferiam a sapatilha e outros ainda andavam descalços, não por escolha, é claro. mas só havia um par de mary janes.
eu vou entrar, ele disse. depois de tanto tempo em si, tudo o que precisava era um pouco dela. assim que ergueu o rosto e tomou coragem, ela apareceu. sorria e girava nos calcanhares com suas meias de bolinha, ela usava meias de bolinha o tempo todo. me alcança os sapatos?
saíram sem limpar a sola. outros livros ainda hão de ser escritos para que eles rabisquem suas margens. quem os visse agora, não entenderia nada, mas existem coisas que palavras não explicam - e já foi ousado demais da minha parte de seguir até aqui.
onomatopwia.
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coletânea - desafio de escrita.
Contodescansa aqui a minha alma. sobre amor em suas várias facetas. sobre tudo aquilo que apareceu na minha cabeça em trinta dias criativos. vivi o máximo. aproveite. plágio é crime.