XXV - "remember"

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ele me puxa para perto num abraço. não temos esse costume; mal nos tocamos mesmo que nossos genes sejam idênticos e que eu seja parte dele. literalmente parte dele. ele também deveria ser uma parte minha, mas não é o que sinto.
ele é a estrela.
- quer ajuda com as malas?, diz, ao me soltar. são pesadas. eu sei que você consegue carregar, mas me deixe fazer isso dessa vez. talvez a última vez, não é?
nós éramos um só. duas crianças em uma, o ventre nos unindo. três cirurgias foram necessárias para que Afonsoalice se tornasse Afonso e Alice. irmãos siameses, é o nome; e acho engraçado o quanto isso me lembra daquela espécie de felino. ele se parece muito com um gato, com aquele seu jeito misantropo. quieto. seco.
eu só fui me descobrir diferente muito tempo depois. a sua luz me ofuscava.
- agora, alguns conselhos. sempre diga a coisa certa, você sabe.
ele nunca foi afável. mas quando o era, não havia dúvidas que estava sendo verdadeiro.
que amava.
nunca ouvi um "eu te amo" dele.
- não deixe de viver. a vida é curta e os dias se esgotam depressa. lembre-se. se for beber, e eu sei que você vai - sorriu, me desvendando - tome cuidado.
chegamos ao portão. a rodoviária está apinhada de gente, uns dando tchau, outros dando adeus. alguns dando olá. o caos de sempre.
- manda notícias. escreva. me ligue. a qualquer hora. você é bem-vinda de volta, sempre.
e completa:
- mas não se sinta pressionada em voltar, eu sei, eu sei. no fundo você só quer se livrar de mim... - finge uma lágrima.
encosto minha testa na dele e ficamos assim.
- "seja lá do que nossas almas são feitas...", hesito, esperando que ele continue.
- "a minha e a dele são iguais". claro que ele sabe.
cruza os braços. seus olhos são o próprio Alasca. me pergunto se os meus são assim também. longe, já olhando pela janela, não posso deixar de gritar:
- ei, Afonso!
vejo-o virar o rosto, surpreso.
- não se esqueça de mim!
é só o que peço.
ele responde, com a face pálida sorrindo e os olhos brilhando. não é mais o Alasca, acho que o derreti de vez.
- nunca!
nós nos veremos de novo. essa cicatriz que nos corta sempre será nossa.
parto.
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me disseram que era uma metáfora.
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                                             onomatopwia.

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