O segundo

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Ele havia visto.

Ele nunca desejou ver.

Não queria estar ali, mas ele estava.

Ele não queria saber.

Ele não precisava saber, porém agora ele sabia o segredo sujo de sua mãe.

Nas últimas semanas ela havia começado com toda uma bajulação, ela mais uma vez queria fazer aquele joguinho sujo de manipulação, ele sabia.

Contaria para todos e já tinha avisado para ela, se aquela burra aguardava misericórdia ou que o desinteresse fizesse ele não se importar o suficiente para entregá-la, ela estava no mínimo equivocada.

Gustavo acreditava que a vida era completamente recheada de escolhas, a maldita da sua mãe havia feito as delas. 

A culpa era dela.

Ele não carregaria a culpa de uma vadia.

Seria hoje, em um jantar de família, que ela seria humilhada, tudo que Gustavo mais queria era que todos a punissem com palavras.

E que cada uma delas machucassem.

Aquela família podre, cheia de mentiras e segredos soterrados fazia aumentar progressivamente o desejo de que pelo menos um desses fosse explanado.

Ele amava sua mãe, mas não tanto assim.

Ele a amava até os limites das aparências, assim como ela o ensinou.

E ele contaria porque o ódio, o rancor e toda a dor que ele sentia eram bem maiores do que aquele amor superficial.

Contaria porque seu minúsculo segredo gerou muito mais aflição do que o dela causaria, ele só desejava que ela sentisse uma fração da dor causada pelas palavras que ele escutou.

E contaria porque mesmo em meio as farsas ali expostas, Gustavo ainda era o único julgado.

Julgado por tentar se livrar de tamanha podridão.

Ferido na sua busca por calmaria.

Por tentar fugir.

Gustavo

Hipócritas.

Mergulhados em mentiras e sei que vão se afogar.

Eu me afoguei e não existe ninguém para me resgatar.

Na sala de estar conversando como se não estivessem desejando a morte uns dos outros, como se atrás daqueles sorrisos vazios não houvessem mentiras sujas.

E assim como eles, também carrego o fardo das mentiras que tento mascarar com um sorriso, através de uma expressão no rosto que emana a falsidade herdada com o tempo.

Dói.

Minha alma clama por calmaria, pede por leveza.

E eu sei, sei exatamente o que fazer para acalma-la.

No menor dos estímulos prossigo para o meu vício.

Subindo o primeiro degrau decido que usar o banheiro do quarto de hóspedes é o mais sábio a fazer.

Quarto degrau, tenho noção do tempo de minha abstinência e sei que é um retrocesso.

Sexto degrau, relembro-me de que não posso perder o controle.

Não outra vez.

Ao chegar no nono degrau sinto a mistura entre a adrenalina e o desejo de sentir.

Estou no décimo degrau e eles ainda estão na sala, tão imersos em suas próprias covas que nenhum deles percebe a minha saída.

É no último degrau que chego a conclusão de que depois dessa vez talvez não ocorra uma próxima.

Abro a porta do quarto e é claro que minha avó não se deu o trabalho de organizar esse lugar, nunca é usado.

Como se as paredes desse lugar os sufocassem com lembranças e deixasse expostas feridas de tudo o que foi escondido.

Eu sou o motivo e eles tolos o suficiente para não notar.

Esse banheiro, essa banheira, a lâmina escondinda atrás da falha na segunda cerâmica do piso.

Minha memória é sacudida por cenas da última vez.

Tão fria e tão frágil. O toque gélido que combina perfeitamente com o calor de meu sangue, com a elasticidade de minhas artérias.

Não faço cortes fundos, nunca mais fiz.

Sou covarde ao ponto de fazer cortes que ninguém poderia vê, mas o suficiente para que eu veja e para que eu me lembre de quem eu sou.

Mas nunca o suficiente para que outra pessoa veja.

A raiva e medo estão aqui novamente e fazem conflitar meus sentidos e assim esqueço de manter o controle.

Lágrimas borram minha visão, percebo ter feito algum estrago em meu pulso esquerdo. O sangue que emana dali está tão escuro, a dor que me consome a cada instante é diferente.

Talvez eu queira fazer o mesmo no outro pulso e quebrar a promessa que fiz de não desistir.

Mas o erro da minha mãe foi o necessário, foi a desculpa que eu esperava.
Era o que eu precisava.

Foi o ápice para que eu cortasse o mais fundo possível.

As forças estão indo embora de meu corpo e eu quero tanto gritar, mas privo-me, porque nunca pude fazer nada do que quis.

Não acredito que tudo acaba aqui.

As mentiras não serão um fardo que levarei ao meu túmulo. 

Que elas fiquem aqui para atormentar todos eles.

Tenho a certeza que a vida deles não vai acabar, mas não a certeza de que minha vida vale menos que a deles.

Se eu tenho esse valor nunca irei descobrir. 

Quase sem forças me arrasto até o armário do banheiro e pego os meus velhos comprimidos. Meus velhos e bons amigos.

Cabe em mim a dúvida do quanto eles são burros ou não se deram o trabalho de tira-los dali.

Acho que o burro sou eu por pensar que se importariam ao ponto de fazê-lo.

Me agacho e sinto que meus pulsos doem, tudo dói. Com a água da torneira tomo os remédios, aos poucos engulo todos eles.

O alívio me faz lembrar da última vez, a dor dos pulsos agora nem se compara com a dor de minha alma.

Ela dança com o calor de meu sangue. Bonita e precisa em seus passos. Como uma bruta valsa.

E em sua glória ela grita.

Com o seu ápice a dor esperneia em mim.

Mas aos poucos deixo de escutar, deixo de sentir e respirar torna-se um esforço em vão.

Fecho os olhos e quero rir, pois sei que diferente das outras vezes não voltarei a abri-los.

Cinco Formas de MorrerOnde histórias criam vida. Descubra agora